Segundo Jannuzzi, muitas soluções já estão em prática em municípios brasileiros, mas permanecem invisíveis. “Há uma revolução silenciosa na qualificação do gestor público. Precisamos documentar experiências locais e colocá-las à disposição do debate nacional” (foto: Daniel Antônio/Agência FAPESP)
Publicado em 29/08/2025
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Soluções individualistas, que acolhem apenas interesses de determinados grupos, não vão garantir a sobrevivência digna da sociedade em um contexto de acirramento das desigualdades, guerras e extremismos, somados às consequências das mudanças climáticas e do envelhecimento populacional. Essa foi a avaliação de Paulo Jannuzzi, conferencista da 6ª edição das Conferências FAPESP 2025: “Contribuições para a COP30 – A Interface entre o Conhecimento e a Gestão em Políticas Públicas”, realizada na sexta-feira (29/08).
Jannuzzi é professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Ence-IBGE), diretor do Centro de Colaboração Interinstitucional de Inteligência Artificial Aplicada às Políticas Públicas (Ciap), colaborador do mestrado profissional em avaliação e monitoramento da Escola Nacional de Administração Pública (Enap) e pesquisador colaborador do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Universidade Estadual de Campinas (Nepp-Unicamp). Foi secretário de Avaliação e Gestão da Informação do Ministério de Desenvolvimento Social (2011-2016) e membro do Painel de Especialistas em Avaliação do International Evaluation Office do Programa das Nações Unidas em Nova York (2016-2019).
O especialista iniciou sua conferência com uma apresentação dos desafios civilizatórios do século 21, ressaltando que eles não podem ser enfrentados apenas com evidências científicas. “As evidências não são neutras, elas estão baseadas em valores que podem ser mais republicanos ou mais individualistas”, afirmou.
Um dos pontos centrais da conferência foi a reflexão sobre o papel da inteligência artificial (IA). Jannuzzi alertou para os perigos da corrida tecnológica entre grandes empresas. “Estamos vivendo um momento muito forte das big techs. Elas disputam o mercado da informação do século 21, acelerando o desenvolvimento da inteligência artificial sem compromisso ético”, acusou. E lembrou que a ausência de regulação das redes sociais já causou danos profundos, com disseminação de discursos de ódio e fake news. “O mesmo pode ocorrer com a IA. Há risco de criação de inteligências artificiais autônomas legitimando verdades terraplanistas, normalizando discursos de ódio e discriminação.”
Por outro lado, o pesquisador chamou a atenção para o fato de que essa nova tecnologia abre horizontes inéditos. “A inteligência artificial é mais aberta a informações confiáveis, porque precisa de discursos consistentes. E está rompendo os limites entre as disciplinas científicas, porque consegue aproximar áreas que antes mal se comunicavam e articular visões que antes pareciam heresias. Isso permite ultrapassar o multidisciplinar e o interdisciplinar para alcançar um conhecimento verdadeiramente transdisciplinar”, destacou.
Políticas públicas precisam se apoiar em valores civilizatórios, não apenas em métricas de eficiência, ressaltou Jannuzzi (foto: Daniel Antônio/Agência FAPESP)
Jannuzzi utilizou metáforas culturais para ilustrar os futuros possíveis. Um deles, distópico, seria a Los Angeles do filme Blade Runner, dominada por desigualdades extremas e ausência de regulação. Outro, positivo, seria uma adaptação de Shangrilá, o paraíso mítico do filme Horizonte perdido, refilmado nos anos 1970, algo semelhante a Portugal, um país com carga fiscal elevada, forte sistema de saúde e educação, solidariedade intergeracional e regulação da inteligência artificial. Entre um extremo e outro, o pesquisador posiciona o Brasil, mais próximo do cenário do filme Bacurau, “com políticas públicas a meio caminho e cidadania incompleta”.
Para transitar de Bacurau a Shangrilá, Jannuzzi enfatizou a necessidade de soluções alicerçadas em valores republicanos. E indicou como ferramenta a aplicação de inteligência artificial às políticas públicas. Com esse objetivo, sublinha a importância da criação da “Rede de Pesquisa IA2PP – Inteligência Artificial Aplicada às Políticas Públicas”, uma proposta elaborada pelo Centro de Estudos e Pesquisas Aplicadas ao Setor Público da Universidade Federal de Goiás (Cepasp-UFG), pelo Nepp-Unicamp e pela Ence-IBGE, com contribuições de parceiros.
“Estamos investindo nesse projeto. A nossa inteligência artificial não fala de tudo, ela foi programada para responder às perguntas que prefeitos e gestores têm: Como reduzir filas do SUS? Como melhorar o desempenho das escolas? Como incluir a população em situação de rua? Esse é o sentido da Rede de Pesquisa IA2PP”, contou Jannuzzi. Ele acrescentou que uma das aplicações práticas da rede é o ChatPP, uma IA conversacional treinada em políticas públicas.
O pesquisador revelou que muitas soluções já estão em prática em municípios brasileiros, mas permanecem invisíveis. “Há uma revolução silenciosa na qualificação do gestor público. Precisamos documentar experiências locais e colocá-las à disposição do debate nacional.”
Jannuzzi insistiu no ponto de que as políticas públicas precisam se apoiar em valores civilizatórios, não apenas em métricas de eficiência. E defendeu a Constituição de 1988 como guia para a construção de uma “sociedade livre, justa e solidária”.
Além de Jannuzzi, três debatedores participaram da conferência: Gabriela Marques Di Giulio, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Programa BIOTA FAPESP; Jean Ometto, pesquisador sênior do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e vice-coordenador da Rede Brasileira de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (Rede CLIMA); e Rafael Barreiro Chaves, especialista ambiental da Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística (Semil) e vice-diretor do BIOTA Síntese, financiado pela FAPESP.
Di Giulio apontou que a superação da emergência climática exige coprodução de conhecimento e reconhecimento da diversidade de saberes. “Precisamos promover uma interação dialógica e respeitosa entre cientistas, formuladores de políticas e a sociedade em toda a sua pluralidade. Todos somos produtores de conhecimento – científico, empírico, tradicional, local. O desafio é dar legitimidade a esses diferentes saberes, e não deixar que apenas a chamada evidência científica prevaleça.”
Já Ometto ressaltou a importância de aproveitar as janelas de oportunidade. “A política pública é complexa, multifacetada, mas há momentos em que se abre uma janela. Nesses momentos, a ciência tem de oferecer informação robusta, com lastro e confiança, para que gestores possam tomar decisões que impactarão os sistemas produtivos e sociais por 20 ou 30 anos. A ciência não possui a bala de prata, mas, quando tem credibilidade, ajuda a sustentar políticas de longo prazo, como vimos no SUS [Sistema Único de Saúde] ou na Política Nacional de Mudança Climática.”
Chaves, por sua vez, enfatizou a urgência de transformar a relação entre pesquisadores e gestores em uma via de mão dupla. “Quando o pesquisador constrói sua pergunta junto com o gestor, ele entende os limites, as possibilidades e o tempo de implementação. É nesse diálogo que surgem soluções concretas, reais e factíveis. A coprodução, como disse o Paulo Jannuzzi, é parte de um avanço civilizatório: precisamos sair da lógica tecnocrática, de mão única, e criar conhecimento compartilhado. Isso significa trazer gestores para dentro da pesquisa, do início ao fim, e também colocar pesquisadores no esforço cotidiano da gestão pública.”
A conferência foi organizada por Vanessa Elias de Oliveira, professora da Universidade Federal do ABC (UFABC) e coordenadora do Programa de Pesquisa em Políticas Públicas da FAPESP. E teve a moderação de Sabine Righetti, pesquisadora e professora no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp e coordenadora do Programa Mídia Ciência da FAPESP.
A 6ª Conferência FAPESP “Contribuições para a COP30 – A Interface entre o Conhecimento e a Gestão em Políticas Públicas” pode ser assistida na íntegra em: youtube.com/live/9Lhd8oAF5BE.