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Aids avança entre os jovens em cenário de cortes na saúde, alerta pesquisadora


Aids avança entre os jovens em cenário de cortes na saúde, alerta pesquisadora

Queda no investimento em políticas de promoção da saúde é um dos obstáculos ao combate à doença (foto: C. Goldsmith/Wikimedia Commons)

Publicado em 12/04/2021

Maria Fernanda Ziegler, de Paris | Agência FAPESP – O número de pessoas infectadas pelo HIV vem diminuindo em escala global, assim como o número de mortes causadas pela Aids. Mas, segundo as estatísticas oficiais, essa redução ocorre de maneira desigual entre diferentes países e também entre diferentes segmentos sociais. Em adolescentes, por exemplo, o risco de contrair a infecção tem crescido significativamente nos últimos anos.

“Estamos longe do fim da Aids. Esse discurso de que estamos por vencer a doença é contraprodutivo, pois nos distrai de uma dura realidade”, disse Vera Paiva, uma das coordenadoras do Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids na Universidade de São Paulo (Nepaids-USP), em palestra na FAPESP Week France, entre os dias 21 e 27 de novembro.

Em 2016, a Conferência Internacional da Aids – considerada o maior e mais importante fórum global sobre a epidemia – apontou os adolescentes como população-chave entre os grupos desproporcionalmente afetados pela doença. Dessa forma, o grupo se tornou uma das prioridades de políticas públicas, ao lado de outras populações historicamente consideradas mais expostas à infeção pelo HIV e à mortalidade por Aids, como usuários de drogas injetáveis, homens que fazem sexo com homens, pessoas transgênero e profissionais do sexo.

“A maior vulnerabilidade dos adolescentes ao HIV é uma tendência global. Atualmente, existem mais de 2 milhões de adolescentes e jovens adultos (15-24 anos) infectados. Esse é o único grupo em que a taxa de infecção continua a aumentar, com um risco relativo 50% maior em relação às outras faixas etárias”, disse

“Conforme disse Gunilla Carlsson, diretora executiva da Unaids [Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS], é inaceitável que toda a semana 6 mil adolescentes, meninas e jovens mulheres sejam infectados por HIV em todo o mundo porque seus direitos reprodutivos e sexuais continuam sendo negados”, disse Paiva, que coordena uma pesquisa sobre adolescência e Aids no Brasil. O estudo é apoiado pela FAPESP por meio de um Projeto Temático.

De acordo com a pesquisadora, no Brasil é ainda mais preocupante o crescimento da vulnerabilidade à Aids entre os adolescentes por causa da queda nos investimentos em políticas de promoção da saúde. Paiva destacou que essas medidas são amparadas pela Constituição Federal, que prevê o direito à educação, à saúde e estabelece a laicidade do Estado.

A desigualdade importa

Enquanto nos países de baixa e média renda as mulheres jovens são as mais afetadas, destacou Paiva, nos mais ricos são pessoas transgênero, bissexuais, gays e a população indígena não branca.

“Essa desigualdade deve ser considerada na formulação dos programas de combate à Aids. O atual abandono de políticas públicas baseadas na promoção dos direitos humanos é um dos obstáculos-chave no Brasil”, disse a pesquisadora.

As políticas implementadas no Brasil entre os anos de 1993 e 2013 são consideradas internacionalmente como um caso de sucesso, disse Paiva. “O sucesso veio amparado na implementação do direito à saúde e à prevenção, assim como projetos de educação sexual e, sobretudo, ao estado laico que literalmente apoiou uma resposta nacional baseada em evidências científicas e não em pregações de moral ou bom comportamento”, disse.

Para a pesquisadora, foram cruciais para o controle da epidemia nas décadas anteriores o cenário de acesso público à saúde – que dá direito aos insumos de prevenção e ao tratamento com drogas eficientes – e as ações de equidade, que compensam desigualdades sociais e envolvem a cooperação de diferentes atores como ONGs e governos locais para a prevenção da doença.

“Entre as ações efetivas está o trabalho de educação sexual e prevenção incluído nos currículos escolares nos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal. Essa aliança resultou na diminuição da Aids por duas gerações e, na década de 2000, produziu ainda um importante debate no país sobre diversidade sexual e desigualdade de gênero”, disse.

Durante a apresentação na FAPESP Week France, Paiva ressaltou resultados consistentes desses programas. “Nos anos 1980, o uso de preservativo entre jovens de 14 a 19 anos era quase zero. No final dos anos 1980, 48% dos jovens usavam preservativos. Em 1998, o índice foi para 54% e de 2013 para cá, a taxa varia de 62% para 69% nas escolas secundárias. A idade de iniciação sexual no país permaneceu entre 14 e 15 anos”, disse.

Nesse período, Paiva destacou ainda uma pesquisa inovadora na área de saúde, ciências sociais e educação, que consolidou a compreensão de que a sexualidade não se reduz aos hormônios e que compreender o impacto da desigualdade de gênero e considerar a diversidade sexual, cultural e religiosa é crucial. “Esses são princípios centrais de programas iniciados e coordenados no Sistema Único de Saúde e baseados em direitos humanos e evidência”, disse.

“Um dos desafios para a pesquisa, agora, é monitorar e compreender o impacto da conjuntura atual, em que políticas baseadas em direitos humanos estão sob ataque e não apenas no Brasil”, disse Paiva.

Segundo a pesquisadora, desde 2016, políticas de austeridade no Brasil têm cortado o investimento em saúde pública, educação e ciência. “Assim como em outras partes do mundo, esses cortes vêm acompanhados de um movimento político articulado por discursos religiosos e anticientíficos. Portanto, garantir a saúde sexual e reprodutiva dos jovens exige novas concepções que permitam a sustentabilidade de programas baseados em evidências e não em pregação moral”, disse.

Para a pesquisadora, os discursos religiosos e anticientíficos que têm se tornado mais frequentes estão na direção contrária à que produziu o sucesso colhido por duas décadas. Retomam abordagens que comprovadamente não foram eficazes no início da epidemia.

“Os discursos amparados na defesa de que só a família deve falar sobre sexualidade com os jovens, não as escolas, desconsideram mudanças importantes na cultura sexual e na socialização para a sexualidade hoje mediada pela internet: 93% dos adolescentes das classes D e E e acessam à internet via celular”, disse.

Dessa forma, de acordo com a pesquisadora, essas mudanças culturais e políticas precisam ser prioridade na agenda de pesquisa que contribua para a renovação das ações de prevenção. “O desmantelamento de políticas de prevenção e do financiamento de pesquisas que monitoram seus resultados, monitoramento que retroalimenta e corrige técnicas e práticas pouco efetivas, indicam a negligência na promoção de direitos à prevenção, especialmente entre os mais jovens”, disse.

Análises epidemiológicas mostram que jovens nascidos nos anos 1990 e que iniciaram a vida sexual por volta dos anos 2000 têm três vezes mais chance de serem HIV positivo que os nascidos nos anos 1970 e que iniciaram a vida sexual antes da explosão da epidemia de Aids começar a ser controlada pelo acesso à medicação antirretroviral e o acesso massivo a programas e insumos de prevenção.

Dados de 2018, no entanto, indicam que no Estado de São Paulo a taxa de Aids na faixa de 15 a 19 anos passou de 2% para 7% dos casos. Houve também um aumento dos casos entre negros, enquanto os índices caíram entre os brancos. “A análise interseccional é crucial quando a desigualdade importa, como é o caso do discurso técnico-científico voltado a evitar que diferenças se tornem desigualdades”, disse.

O simpósio FAPESP Week France foi realizado  graças a uma parceria entre a FAPESP e as universidades de Lyon e de Paris, ambas da França. Leia outras notícias sobre o evento em www.fapesp.br/week2019/france.
 

Fonte: https://agencia.fapesp.br/32210