Pesquisadores do Instituto de Química da USP estudaram pessoas insensíveis à dor e identificaram proteínas modificadas que impedem a transmissão do impulso doloroso (foto: Tumisu/Pixabay)
Publicado em 24/05/2022
Agência FAPESP* – Pessoas que não sentem dor podem ser a chave para a descoberta de novas classes de medicamentos analgésicos. Com base nessa ideia, pesquisadores do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) analisaram mutações genéticas em pacientes com insensibilidade congênita à dor com anidrose (Cipa) – uma doença genética rara – e identificaram proteínas modificadas que impedem a transmissão do impulso doloroso.
A partir dos dados obtidos, eles desenvolveram um peptídeo, denominado TAT-pQYP, que apresentou efeito analgésico em um modelo animal de dor inflamatória. Os resultados foram publicados em “artigo de capa na revista Science Signaling.
“Pessoas que têm mutações no receptor do fator de crescimento neural [proteína conhecida pela sigla NGF] não sentem dor. Fizemos um estudo detalhado das mutações descritas na literatura para essa doença e modelamos os efeitos das diferentes mutações encontradas em pacientes. Ao entender o que acontece com pessoas que não sentem dor, podemos mimetizar essa situação para tratar pacientes com dor e também tentar uma inibição mais específica para algum processo, evitando efeitos colaterais”, afirma Deborah Schechtman, professora do Departamento de Bioquímica do IQ-USP e coordenadora de um projeto financiado pela FAPESP.
Especialista em dor e coautora do estudo, a professora Camila Squarzoni Dale, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, explica que “os analgésicos usados hoje para dor crônica são moduladores da neurotransmissão, no caso dos antidepressivos e dos anticonvulsivantes, ou moduladores da resposta inflamatória, no caso dos anti-inflamatórios. Nosso peptídeo é diferente, ele modula diretamente uma via de dor. Nossa intenção é modificar como o cérebro interpreta a dor, modificando como os impulsos dolorosos vão entrar no sistema nervoso”.
Cerca de 10% da população adulta mundial é portadora de dor crônica. Nos Estados Unidos, para cerca de 7% das pessoas a dor crônica é incapacitante. “O que é impactante é que esses números superam o total de diabéticos ou de pessoas com doenças cardíacas ou mesmo de pessoas com câncer”, afirma a pesquisadora.
Caminhos da dor
Cipa é uma doença autossômica recessiva rara, que tem como principais sintomas a falta de percepção da dor sensorial e a incapacidade de suar. Como a dor física tem função protetora, sendo fundamental para nossa sobrevivência, é comum que pessoas com esse distúrbio morram na infância, por lesões ou doenças não percebidas.
Pacientes com Cipa têm mutações no gene NTRK1, que codifica o receptor de tropomiosina quinase (TrkA), afetando a expressão e/ou atividade dessa proteína. Um dos principais fatores que levam à doença é a perda de função do TrkA, que é ativado pelo fator de crescimento neural (NGF). A dor inflamatória se inicia com a liberação do NGF, que ativa o TrkA nos neurônios sensoriais periféricos, seguida da despolarização neuronal, atingindo o sistema nervoso central.
A partir dos dados obtidos, os pesquisadores desenharam um peptídeo permeável à célula, baseado na região de ancoragem da fosfolipase Cγ no receptor TrkA. O peptídeo foi testado em células, nas quais inibiu a ligação entre TrkA e PLCγ e reduziu a ativação de fosfolipase C gama PLCγ mediada pelo fator de crescimento neural. O passo seguinte foi testar em um modelo animal de dor inflamatória para confirmar o papel da PLCγ na sinalização celular da dor e a eficácia do peptídeo.
“Vimos que a molécula reverte a dor nos animais provocada por estímulos mecânicos e térmicos, por um período prolongado. Temos um peptídeo que modula uma das vias mediadas pelo NGF e pode funcionar para a dor tanto aguda quanto crônica”, comenta Dale.
O peptídeo potencialmente terá menos efeitos colaterais. “Mostramos que ele inibe a fosforilação da fosfolipase Cγ, mas não inibe toda a sinalização mediada pelo NGF. Dessa maneira, inibe pontualmente uma via da dor”, explica Schechtman, acrescentando que “o peptídeo pode ser um condutor para um fármaco. Um bom alvo de droga pode modular a atividade enzimática ou uma interação proteína-proteína, como é o nosso caso”. Os pesquisadores agora estão trabalhando para resolver a estrutura do complexo TrkA/PLCγ.
Outro objetivo é encontrar a melhor formulação terapêutica do peptídeo. “Nossa intenção é dividir esse trabalho com a indústria farmacêutica, para podermos desenvolver um produto. Como se trata de uma molécula pequena, acreditamos que possa ser usada em formulações como pomadas, em apresentações tópicas, para ser absorvida pela pele. Achamos que o peptídeo vai ter uma eficácia diferenciada em termos de efeito para a dor”, conclui Dale.
O artigo Structural analysis of TrkA mutations in patients with congenital insensitivity to pain reveals PLCγ as an analgesic drug target pode ser lido em: www.science.org/doi/10.1126/scisignal.abm6046.
* Com informações da Assessoria de Imprensa do Instituto de Química da USP.