Estudo aponta o roedor preá-do-nordeste (Galea spixii) como um dos reservatórios do protozoário Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas (foto: Ronilton Senna / Wikimedia Commons)
Publicado em 12/04/2021
Maria Fernanda Ziegler, de Lyon | Agência FAPESP – A doença de Chagas é considerada um dos maiores problemas de saúde pública na América Latina. Segundo dados da organização sem fins lucrativos Drugs for Neglected Diseases initiative (DNDi), vivem na região cerca de 6 milhões de pessoas infectadas, distribuídas em 21 países. Apenas 10% delas são diagnosticadas e só 1% recebe tratamento.
No Brasil, o Ministério da Saúde estima a existência de pelo menos 1 milhão de infectados pelo protozoário Trypanosoma cruzi – causador da doença que, quando se torna crônica, pode levar à morte por insuficiência cardíaca. Mais de 90% dos casos se concentram nas regiões Norte e Nordeste.
Com o objetivo de compreender os elementos envolvidos na cadeia de transmissão da doença de Chagas no semiárido brasileiro, pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) conduziram um estudo de campo no município potiguar de Marcelino Vieira, onde, em 2015, ocorreu um surto possivelmente causado por transmissão oral. Foram três mortes e 18 casos registrados, todos relacionados ao consumo de caldo de cana processado junto com o vetor do protozoário, no caso, o barbeiro (Triatoma brasiliensis), segundo o relato de pacientes.
A pesquisa contou com apoio da FAPESP e foi apresentada durante o simpósio FAPESP Week France.
“Na região do semiárido brasileiro, sobretudo onde ocorrem os surtos, é preciso ter uma compreensão mais precisa sobre os elementos envolvidos na cadeia ecoepidemiológica, pois o risco de infecção pode estar mudando. Fatores socioeconômicos, comportamentais e climáticos podem exercer influência crucial na biologia das espécies de vetores e de parasitas”, disse Carlos Eduardo de Almeida, professor do Instituto de Biologia da Unicamp e coordenador do projeto.
O percevejo da espécie Triatoma brasiliensis – popularmente conhecido como barbeiro – é o principal vetor da doença de Chagas na região estudada. Em colaboração com cientistas franceses do Centre Nacional de la Recherche Scientifique (CNRS), Almeida tem trabalhado no sequenciamento do genoma e no estudo do transcriptoma (conjunto de genes expressos) de espécimes de T. brasiliensis capturados no local do surto.
Por meio da análise de marcadores genéticos do tipo polimorfismo de nucleotídeo único (SNPs, na sigla em inglês), o grupo desenvolve estudos de genética de população para entender os processos de especiação e adaptação nesse grupo de insetos. O trabalho tem sido realizado no âmbito do Programa São Paulo Excellence Chair (SPEC).
As análises indicam que os domicílios de Marcelino Vieira foram invadidos por populações silvestres e domésticas de T. brasiliensis, ambas com alta prevalência de infecção pelo T. cruzi. O cenário, segundo Almeida, é propício para a ocorrência de novos surtos.
“Esses insetos não nascem infectados pelo parasita. Eles geralmente se contaminam ao picar algum animal e, assim, tornam-se aptos a transmitir a doença para os humanos”, explicou.
Dados da pesquisa revelam que 52% dos barbeiros silvestres capturados e 71% dos insetos domésticos estavam infectados pelo protozoário. A alta prevalência da infecção nos espécimes silvestres e a ocorrência de duas linhagens parasitárias diferentes são fatores que, na avaliação do pesquisador, ameaçam os esforços de controle da doença.
O estudo mostrou ainda que 68% dos 202 insetos analisados por meio de técnicas moleculares tinham se alimentado do sangue de preás (Galea spixii) e de mocós (Kerodon rupestris). Esse achado aponta os roedores como possíveis reservatórios do T. cruzi – função que anteriormente era atribuída somente aos gambás (Didelphis). Os resultados foram publicados na PLOS Neglected Tropical Diseases .
Por meio de trabalhos de modelagem ecológica, os pesquisadores identificaram os ambientes que favorecem a infestação dos roedores nas proximidades das habitações humanas. “Esse conhecimento permite traçar uma estratégia de controle da doença de Chagas semelhante à usada contra a dengue: evitar a formação de criadouros do inseto vetor e dos roedores em reservatórios, como, por exemplo, amontoados de madeira e de tijolos”, disse Almeida.
Nova espécie
Os cientistas pretendem agora realizar exames sorológicos na população do Rio Grande do Norte para mensurar a real dimensão do surto. No entanto, uma das descobertas da pesquisa pode se tornar um complicador.
O grupo encontrou, pela primeira vez na natureza, espécimes de T. brasiliensis infectados por parasitas Trypanosoma rangeli. “Esse protozoário não é patogênico e, portanto, não ameaça a saúde humana. Entretanto, pode causar reações cruzadas e resultados falso-positivos em exames sorológicos para a detecção da doença de Chagas”, disse.
O fato, segundo o pesquisador, pode dificultar a avaliação da prevalência da população humana infectada pelo T. cruzi, informação essencial para o desenvolvimento de políticas públicas.
O simpósio FAPESP Week France foi realizado entre os dias 21 e 27 de novembro, graças a uma parceria entre a FAPESP e as universidades de Lyon e de Paris, ambas da França. Leia outras notícias sobre o evento em www.fapesp.br/week2019/france.