Há duas décadas, programa de pesquisa de conservação e restauração da biodiversidade oferece a base científica para a criação de unidades de conservação, uso do solo e preservação ambiental no Estado de São Paulo (foto: Heris Luiz Cordeiro Rocha/Wikimedia Commons)
Publicado em 12/04/2021
Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – Em 1999, os pesquisadores Carlos Joly e Naercio Menezes propuseram a criação de um programa de pesquisa para mapear a biodiversidade do Estado de São Paulo. A ideia era ampliar o conhecimento sobre o tema para preservar a biodiversidade e avaliar o uso sustentável de produtos naturais com potencial econômico. Paralelamente, o conhecimento adquirido nas pesquisas serviria ainda de base para a formulação de políticas públicas e regulação para a conservação ambiental no Estado.
“Devo confessar que, na época, recebi a proposta com certo ceticismo. Era um instituto virtual, sem paredes, sobre a biodiversidade. Em vez de pesquisas individuais, teríamos um grande programa de pesquisa com projetos articulados entre si”, contou José Fernando Perez, diretor científico da FAPESP entre 1993 e 2005, que participou do webinar comemorativo dos 20 anos do BIOTA-FAPESP.
Aprovado pela FAPESP, o BIOTA usava a articulação como uma forma de construção coletiva do conhecimento. “Eles mobilizaram a comunidade científica, escreveram o programa e selecionamos nove projetos de pesquisa de alta qualidade já no primeiro ano. Era uma ideia boa, que exigia um investimento amplo e por isso demandou uma avaliação cuidadosa. Como não podia ser diferente, aos poucos fui convertido para as belezas desse desafio”, lembrou Perez.
Para conhecer, mapear e analisar a riqueza de espécies do Estado de São Paulo, o BIOTA também inovou em seu desenho, amparando-se no uso da tecnologia. Entre as exigências para participar do programa estava o uso de GPS para identificar com precisão o local da coleta e o compartilhamento de dados – algo ainda incomum na época e que encontrou certa resistência de parte da comunidade científica.
“Os recursos aplicados em ciência, tecnologia e inovação são investimentos para o desenvolvimento do Estado. O programa BIOTA tem tido repercussões extremamente importantes. O estudo e a preservação da biodiversidade dizem respeito à sobrevivência na Terra das espécies, incluída a espécie humana. Essas temáticas não se encerram nelas mesmas, existe um forte vínculo com a conservação das florestas, da água com as mudanças climáticas, só para ficar em três exemplos”, afirmou Marco Antônio Zago, presidente da FAPESP, que era membro do conselho da Fundação no ano de lançamento do programa.
Nos primeiros anos do programa, foi criado um sistema integrado com um banco de dados com mais de 200 mil registros e cerca de 15 mil espécies nativas do Estado de São Paulo e de fora dele. Com o tempo, esse material foi sendo ampliado. Hoje, outro projeto ligado ao BIOTA permite que o Brasil detenha a segunda maior base de dados de produtos naturais no mundo (leia mais em https://agencia.fapesp.br/32549/).
“Na prática, a iniciativa da FAPESP com a criação do BIOTA é fruto do empenho e dedicação dos diferentes pesquisadores. Todas essas iniciativas se beneficiaram de um conjunto amplo de pesquisadores com visões diferentes e conhecimentos complementares. Ao trabalhar em conjunto, eles conseguiram fazer uma ciência muito maior que a soma das partes”, disse Luiz Eugênio Mello, diretor científico da FAPESP.
Biota Neotropica
Embora, de fato, sejam 21 anos de existência, a comemoração das duas décadas é marcada pelo surgimento do periódico científico eletrônico, Biota Neotropica. Nas festividades realizadas no ano da pandemia, o programa realizou uma série com nove webinares em que foram revisados os anos de trabalho e feitos o planejamento das próximas estratégias.
“No começo, precisávamos tanto conhecer a biodiversidade, quanto mapear o que já se sabia. Fizemos também uma série de livros como um índex sobre a biodiversidade do Estado. Contamos ainda com a participação de secretarias de Meio Ambiente e Institutos para transformar a informação disponível em conteúdo que pudesse orientar a tomada de decisão pública”, afirmou Carlos Joly, membro da coordenação do BIOTA-FAPESP.
Com isso, já no início dos anos 2000, foram produzidos mapas que mostravam áreas onde não poderia mais ocorrer a expansão agrícola e áreas apropriadas para a restauração de corredores ecológicos.
Mais recentemente, um estudo publicado em 2020 mostrou que, apesar de representarem apenas 3,5% do total de imóveis rurais cadastrados em São Paulo, as grandes propriedades agrícolas respondem por 54% do déficit ambiental do Estado, ou seja, da perda de áreas de reserva natural.
A estimativa, realizada por pesquisadores do BIOTA, tem o objetivo de fornecer subsídios científicos para a implementação do Programa de Regularização Ambiental no Estado de São Paulo nos próximos 20 anos, seguindo as regras do novo Código Florestal (leia mais em: https://agencia.fapesp.br/34733/).
Hoje, mais de 20 anos depois e cerca de 80 milhões investidos, o programa BIOTA concedeu 293 auxílios e bolsas de pesquisa que envolveram (e formaram) mais de 1.200 pesquisadores. Mais de 3 mil artigos científicos foram publicados.
Além de formar pesquisadores e ampliar o conhecimento sobre a biodiversidade, o programa destacou-se, sobretudo, pelo que veio a ser o seu principal legado: oferecer bases científicas para a criação de instrumentos legais e para o aperfeiçoamento da legislação ambiental do Estado. Atualmente, pelo menos 20 decretos e resoluções citam nominalmente o BIOTA.
“O BIOTA conseguiu algo raríssimo no mundo: ter leis, resoluções e decretos relacionados, que citam os resultados da pesquisa do programa”, afirmou Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP de 2005 a 2020 e atualmente vice-presidente de Redes de Pesquisa da editora Elsevier.
Um exemplo do impacto do BIOTA na formação de políticas públicas é a criação de algumas unidades de conservação em áreas críticas como restingas, ou próximas à Cantareira (na capital paulista), para evitar a expansão de condomínios de alta renda. No interior do Estado, houve a proteção de alguns fragmentos de floresta de Mata Atlântica.
“O programa também realizou pesquisas muito importantes particularmente na Amazônia. A FAPESP tem investido muito na Amazônia e em floresta tropical em geral. Há um enorme interesse internacional em relação à floresta tropical e aos serviços ambientais nesses biomas, e é importante ir além e recuperar uma agenda ambiental muito mais propositiva para dar conta do apagão ambiental que tem muito a ver com a política ambiental e também com o apagão das agências de fomento no Brasil”, disse Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente da Fundação.
“Particularmente, no Estado de São Paulo, a situação de conservação da biodiversidade melhorou. Estamos tendo uma recuperação da cobertura florestal aumentada por processos de restauração e por processos de regeneração natural de áreas florestais. Isso é perceptível e mensurado, mas ainda temos um déficit de cobertura vegetal. Por isso é necessário, por meio do código florestal, promover a restauração das áreas de reserva legal, das áreas de preservação permanente tanto em cerrado quanto nas áreas florestais. Estamos trabalhando na regulamentação florestal, mas São Paulo é uma ilha e, de modo geral, a situação no país tem piorado muito”, afirmou Joly.
Muito da preservação se deu a partir de parcerias de pesquisa e do uso de resultados por gestores públicos para a formulação de políticas públicas. “Um aspecto interessante foi que o programa passou a formar um número considerável de pesquisadores nessa área e alguns deles foram trabalhar no poder público. Então, técnicos das secretarias conheciam a importância e os próprios resultados do BIOTA”, disse Joly.
Para Eduardo Trani, subsecretário de Meio Ambiente da Secretaria de Infraestrutura e Meio Ambiente do Estado de São Paulo, o programa é uma referência para gestores públicos. “O planejamento dos territórios dependia das informações vindas das pesquisas do BIOTA. O planejamento de áreas foi baseado nos resultados da ciência. Com isso, foram criadas oito novas Unidades de Conservação. É um diferencial que coloca São Paulo na vanguarda nas políticas públicas”, comentou Trani.
No ano passado, a Fundação lançou um edital de pesquisa que visa incentivar o trabalho conjunto de pesquisadores e gestores de Unidades de Conservação (UCs) de São Paulo em projetos de pesquisa que resultem tanto no avanço científico quanto na melhoria de gestão (leia mais em: https://agencia.fapesp.br/30800/).
Além do impacto na criação e desenvolvimento de Unidades de Conservação, Trani destaca ainda resoluções que guiaram as políticas públicas de uso de solo, zoneamento agrícola do setor sucroalcooleiro, temáticas de restinga, o licenciamento ambiental, todos vinculados a estudos e tendo como base parâmetros da plataforma e do banco de dados do programa.
“São pesquisas motivadas pela curiosidade dos pesquisadores conectados com as necessidades locais, nacionais e globais. Isso só foi possível pela qualidade de pesquisa do Estado de São Paulo. E a FAPESP também é necessária, pois ao lado de boas ideias vindas dos pesquisadores é preciso uma agência com capacidade de financiamento permanente que permita comemorarmos 20 anos de apoio a esse programa tão importante”, afirmou Brito Cruz.
O BIOTA também formou parcerias com o setor privado, como, por exemplo, com a Natura, empresa brasileira de produtos cosméticos. “Tínhamos apenas uma boa dose de intuição e precisávamos de ajuda. E uma dessas ajudas veio da parceria com a FAPESP, que incluiu o setor privado nesse movimento. Isso nos permitiu acelerar o conhecimento em vários projetos, como o Natura Campus, para ampliar o alcance de conhecimento e da aplicação cosmética da nossa biodiversidade com uma atuação sustentável com preocupação em todos os biomas brasileiros “, disse Pedro Passos, membro do Conselho da Natura.
BIOTA-síntese
Com o sucesso do BIOTA, anos mais tarde surgiram programas nos mesmo moldes integradores, como o Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (BIOEN), criado em 2008, e o Programa de Mudanças Climáticas Globais.
Para os próximos anos, o plano é aumentar a sinergia. Está sendo concebido um centro de síntese, que tende a potencializar o trabalho realizado ao longo dos 20 anos do BIOTA-FAPESP, integrando-o aos outros dois programas. A ideia é analisar colaborativamente os dados disponíveis sobre um tema e usar esse conjunto de informações multidisciplinares na busca por soluções de problemas socioambientais.
De acordo com Joly, o BIOTA-síntese será dividido em cinco eixos temáticos: polinização e produtividade agrícola; restauração e economia de base florestal; segurança hídrica frente às mudanças climáticas; regulação de doenças zoonóticas; e prevenção de doenças em áreas urbanas.
A íntegra do webinar está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5fPjl-vQlyY&feature=youtu.be.