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Brasil tem duas populações de rã-touro, espécie exótica transmissora de fungo mortal


Brasil tem duas populações de rã-touro, espécie exótica transmissora de fungo mortal

Análises genéticas do animal originário da América do Norte presente em nove estados brasileiros mostram que linhagem introduzida no país em 1935 prevalece tanto em cativeiro quanto na natureza, dificultando fiscalização. Rã preda e transmite doenças para espécies nativas (Pesquisadores coletam rã-touro vivendo no meio ambiente / foto: Ana Paula Brandão)

Publicado em 28/07/2022

André Julião  |  Agência FAPESP – Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) realizaram a mais ampla análise genética das populações de rã-touro americana (Aquarana catesbeiana) no Brasil. A conclusão é que há duas populações da espécie no país, ambas presentes tanto em ranários como invadindo ecossistemas locais. O estudo, apoiado pela FAPESP, foi publicado na revista Scientific Reports.

“Confirmamos a existência de pelo menos duas populações diferentes. Uma delas provavelmente descende dos primeiros animais introduzidos no Brasil. Essa população está presente em praticamente todo Sul e Sudeste. A outra é praticamente restrita a Minas Gerais, mas ocorre em menor número em outros estados”, conta Gabriel Jorgewich-Cohen, primeiro autor do trabalho, realizado como parte do seu mestrado no Instituto de Biociências (IB) da USP com bolsa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Introduzida no país pela primeira vez em 1935, no Rio de Janeiro, para a produção de carne, a espécie nativa da América do Norte passou a ser criada em praticamente todo Sul e Sudeste. Porém, se espalhou também na natureza, gerando impactos para os ecossistemas locais, principalmente doenças para as quais as espécies nativas não possuem defesa.

“Nossos resultados mostram que as rãs invasoras e de cativeiro são indistinguíveis geneticamente, reforçando a importância da prevenção dos escapes dos ranários”, afirma Taran Grant, professor do IB-USP apoiado pela FAPESP, que coordenou o estudo.

Caso houvesse uma maior diversidade genética das populações, seria possível saber com mais precisão a procedência de cada animal. Assim, em tese, análises de rãs-touro capturadas na natureza poderiam apontar uma região ou mesmo um ranário de onde ela ou um ancestral próximo escapou, possibilitando uma melhor fiscalização. Entre as populações introduzidas dessa espécie já estudadas em outros países, porém, a brasileira é a que tem a menor diversidade. A rã-touro é considerada a principal espécie de anfíbio invasora no mundo.

Política de Estado

Os pesquisadores analisaram genes específicos de animais coletados em 38 locais nos sete dos nove estados em que a rã-touro é encontrada invadindo a natureza. Foram analisadas 324 amostras, tanto desses indivíduos “selvagens” quanto dos presentes em ranários.

A conclusão é que a imensa maioria faz parte de uma mesma população, descendente da primeira leva trazida da América do Norte para o Rio de Janeiro em 1935 e depois espalhada pelo país, incentivada por políticas estaduais.

De acordo com as análises, a outra população descende de uma leva de animais trazida nos anos 1970 para Minas Gerais, resultado de uma política pública mais tardia daquele estado, que trouxe as matrizes, provavelmente, dos Estados Unidos – além do leste daquele país e do sul do Canadá, a espécie é nativa também do norte do México.

“Os resultados das análises genéticas coincidem com essas duas introduções mais bem documentadas, embora fale-se de outras nos anos 1980 e nos anos 2000, além de iniciativas isoladas de alguns produtores. Se houve outros eventos de introdução, há três hipóteses: eram animais com a mesma origem dos que estavam aqui; houve uma miscigenação a ponto de se fundirem às populações já presentes ou simplesmente não coletamos amostras desses indivíduos”, explica Jorgewich-Cohen, que atualmente faz doutorado na Universidade de Zurique, na Suíça.

No Brasil, o pico da ranicultura ocorreu nos anos 1980, com cerca de 2 mil ranários em funcionamento. Por uma série de fatores, incluindo falta de investimentos privados e de incentivos públicos, na década seguinte a cultura entrou em decadência, com muitas fazendas abandonadas e animais soltos na natureza.

“A espécie se reproduz facilmente, põe muitos ovos e cresce bastante e rápido, chegando a 15 centímetros. Além disso, é bastante resistente a doenças, podendo conviver com a infecção por fungos ou vírus implicados nos declínios globais de anfíbios, sem necessariamente atrapalhar o seu desenvolvimento”, relata Luís Felipe Toledo, professor do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp apoiado pela FAPESP e um dos coautores do estudo.

Invasão americana

Essas características, desejáveis em qualquer espécie para criação, se tornam um múltiplo problema ambiental quando os animais em questão invadem áreas naturais. No caso da rã-touro, os impactos incluem a competição por recursos, como alimento, com as espécies nativas. A espécie norte-americana é ainda um predador voraz, podendo comer não apenas outros sapos como cobras, aves e mesmo pequenos mamíferos. Com seu canto grave, as rãs-touro interferem ainda na reprodução dos anfíbios nativos. “Essas alterações podem ter impactos importantes na reprodução, uma vez que a maioria das espécies de anuros [sapos, rãs e pererecas] depende da comunicação acústica para encontrar, avaliar e escolher os casais”, diz Grant.

O problema ambiental mais grave, ou pelo menos o mais documentado até hoje, porém, é a transmissão de doenças. “Como se espalhou pela Mata Atlântica, do Rio de Janeiro ao Rio Grande do Sul, a rã-touro tem causado vários impactos na fauna nativa. O principal, porém, se deve ao fato de ela carregar o fungo quitrídio (Batrachochytrium dendrobatidis) e o ranavírus, dois patógenos que os anfíbios nativos não têm resistência como ela e que já causaram até extinções de espécies”, conta Toledo.

O fungo quitrídio causa a quitridiomicose, se instalando na pele dos anfíbios, interferindo nas trocas gasosas feitas pelo órgão e podendo levar a paradas cardíacas, seguidas de óbito. O patógeno já dizimou populações de ao menos 501 espécies de anfíbios no mundo (leia mais em: https://agencia.fapesp.br/36843/ e https://agencia.fapesp.br/30128/).

O ranavírus também está associado a declínios de populações desses animais e já foi detectado na Mata Atlântica (leia mais em: https://agencia.fapesp.br/30610/). Segundo a legislação vigente, caso seja encontrado o fungo quitrídio ou o ranavírus em uma criação, é obrigatório notificar o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e fazer o chamado vazio sanitário: todos os animais devem ser mortos e o local desinfetado antes que seja iniciada uma nova criação. No entanto, não é o que ocorre.

“Em praticamente todos os ranários que visitamos foi encontrado o fungo quitrídio. Existe um trânsito intenso de animais dentro do país, com produtores trocando indivíduos entre si com a falsa ideia de que isso vai aumentar a diversidade genética do plantel”, diz o pesquisador, que trabalha junto ao MAPA e secretarias estaduais para melhorar a legislação e tentar controlar a espécie no país.

O que o estudo mostra é que a prática de trocar animais entre ranários apenas consolidou as mesmas populações no país, mantidas com baixa diversidade genética. O que não necessariamente atrapalhou a atividade econômica.

Atualmente, o Brasil produz 400 toneladas anuais de carne de rã-touro. A produção é exclusiva para abastecer o mercado interno. “O interesse na prevenção das doenças causadas pelo fungo quitrídio e o ranavírus é muito incipiente ainda, uma vez que muitos dos produtores nem sequer dão conta de vender o que produzem. Seria preciso melhorar muito a fiscalização. Uma saída alternativa poderia ser desenvolver o setor. Com grandes frigoríficos se interessando pelo produto, obrigatoriamente as exigências sanitárias seriam maiores tanto por parte deles como dos consumidores”, encerra Toledo.

O artigo Genetic structure of American bullfrog populations in Brazil pode ser lido em: https://www.nature.com/articles/s41598-022-13870-2.

Fonte: https://agencia.fapesp.br/39235