Somente 0,024% dos casos confirmados no país foram sequenciados, enquanto no Reino Unido esse índice chega a 5% e, na África do Sul, a 0,256%. Mais de 75% das sequências do país são originárias da região Sudeste e apenas 8% foram geradas após julho de 2020 (imagem: Wikimedia Commons)
Publicado em 15/03/2021
Karina Toledo | Agência FAPESP – Durante o ano de 2020, o Reino Unido liderou os esforços mundiais de vigilância genômica do novo coronavírus (SARS-CoV-2). Das 323 mil sequências publicadas até 5 de janeiro de 2021 na plataforma Gisaid, na qual cientistas de diversos países compartilham informações sobre o patógeno em tempo real, 137 mil (42%) têm origem britânica. Graças a esse esforço, foi possível identificar com relativa rapidez a emergência da nova variante B.1.1.7, considerada entre 50% e 70% mais transmissível que a originária de Wuhan, na China.
Essa nova cepa foi detectada no Brasil pela primeira vez em 31 de dezembro, por pesquisadores do Instituto de Medicina Tropical (IMT) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e da rede de laboratórios Dasa, em amostras de dois pacientes com suspeita de COVID-19 atendidos em São Paulo. O trabalho de sequenciamento foi coordenado pela professora Ester Sabino.
Com essas duas novas sequências depositadas na plataforma Gisaid, o grupo de Sabino atinge a marca de 600 genomas completos sequenciados. O número representa cerca de 30% das 1.828 sequências publicadas por grupos brasileiros no site.
De acordo com a pesquisadora, tal feito só foi possível graças aos recursos humanos e materiais disponíveis no Centro Brasil-Reino Unido para Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus (CADDE), projeto apoiado pela FAPESP e originalmente destinado ao estudo de doenças como dengue e zika.
Os pesquisadores do CADDE avaliam, no entanto, que a situação brasileira está muito aquém da ideal no que diz respeito à vigilância genômica do SARS-CoV-2.
“O Brasil sequenciou apenas 0,024% dos casos confirmados no país [a porcentagem foi calculada com base nos dados da Universidade Johns Hopkins], enquanto no Reino Unido esse índice chega a 5%”, comenta Darlan Cândido, integrante do CADDE que atualmente realiza doutorado na Universidade de Oxford (Inglaterra).
Embora tenha avançado mais do que alguns vizinhos sul-americanos, como Argentina (0,003%), Colômbia (0,013%) e Venezuela (0,010%), o Brasil está atrás de outros países emergentes, entre eles Índia (0,042%), México (0,096%) e África do Sul (0,256%) – esta última já depositou quase o dobro (2.882) de sequências na plataforma Gisaid, embora o Brasil tenha uma quantidade de casos confirmados cerca de sete vezes maior.
E, como ressalta Cândido, não se trata apenas de uma questão de quantidade. As informações brasileiras estão mal distribuídas tanto no tempo quanto no espaço. “Mais de 75% das sequências disponíveis hoje vêm da região Sudeste e isso limita muito o entendimento do que está acontecendo no restante do país. Além disso, a maior parte dos dados foi gerada no primeiro semestre de 2020. Somente 8% das sequências foram publicadas entre os meses de agosto e dezembro, tornando impossível saber, por exemplo, há quanto tempo a nova variante está circulando no país e o quão disseminada ela está”, diz.
Os pesquisadores do CADDE não sabem precisar a causa desse “apagão” ocorrido no segundo semestre do ano passado. Entre as hipóteses apontadas estão dificuldades na importação dos reagentes usados no sequenciamento genômico, o custo elevado dos insumos e equipamentos (agravado pela alta do dólar) e a falta de profissionais habilitados para esse tipo de trabalho fora da região Sudeste.
“No nosso caso, tivemos problemas para importar alguns insumos que estavam em falta no mercado nacional. Recebemos um lote de reagentes de má qualidade e tivemos de importar novamente. Além disso, estávamos finalizando projetos iniciados no primeiro semestre, um deles com o objetivo de entender a taxa de transmissão hospitalar", conta a doutoranda da Faculdade de Medicina (FM) da USP Ingra Claro.
O virologista Fernando Rosado Spilki, que coordena a Rede Corona-ômica – criada entre março e abril pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) para liderar os esforços de vigilância genômica no país –, admite que houve um atraso no último semestre, mas garante que um grande esforço está sendo realizado no momento para recuperar o tempo perdido.
“Boa parte das sequências publicadas no primeiro semestre foi feita com verbas de projetos sobre outros temas que já estavam vigentes e foram redirecionadas para pesquisas sobre o SARS-CoV-2. Apesar de as agências de fomento terem feito um grande esforço para liberar rapidamente mais recursos, existem entraves burocráticos que tornam esse processo demorado”, explica Spilki à Agência FAPESP.
Segundo o virologista, novas sequências já concluídas, ainda em processo de análise, devem ser publicadas nas plataformas internacionais muito em breve. “Após o sequenciamento há um grande trabalho de bioinformática a ser feito e isso requer uma infraestrutura computacional que não se constrói do dia para a noite. Estamos melhorando essa infraestrutura e investindo na compra de insumos. Pretendemos iniciar uma força-tarefa para sequenciar as amostras desse período que foi menos estudado [segundo semestre de 2020] e também para seguir acompanhando o que está acontecendo com o vírus agora”, diz Spilki.
A Rede Corona-ômica conta com recursos da Financiadora de Estudos e Projeto (Finep) e congrega entidades como o Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC/RJ), o Instituto Adolfo Lutz (IAL/SP), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz/RJ e PE), a Fundação Ezequiel Dias (Funed/MG), o Instituto Evandro Chagas (IEC/PA), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a USP.
Enquanto os novos dados não forem divulgados, continuam valendo as informações publicadas pela equipe do CADDE e colaboradores na Science, em julho de 2020 (versão final do artigo foi divulgada em setembro).
“Sabemos, por enquanto, que há 38 linhagens diferentes de SARS-CoV-2 circulantes no Brasil. Aparentemente, ainda predominam as três variantes de origem europeia que emergiram em São Paulo e Rio no mês de fevereiro de 2020. Mas, como há poucos dados publicados depois de julho, é possível que isso tenha mudado”, avalia Cândido.
Como o Brasil é um país de dimensões continentais, afirma Cândido, o que acontece na região Norte ou na região Sul não necessariamente é semelhante ao observado no Sudeste. “É fundamental entender a diversidade genética do vírus que está circulando no país. Só assim será possível detectar linhagens emergentes e descobrir se elas podem impactar a transmissão, o número de casos e a severidade da doença. Sem esse tipo de estudo ficamos no escuro”, alerta.
Novo padrão epidemiológico
De acordo com Sabino, já foram descritas cerca de 800 linhagens do novo coronavírus no mundo. A variante britânica B.1.1.7 – também chamada de VOC (variante de preocupação, na sigla em inglês) – é uma das poucas que apresentaram comportamento epidemiológico diferente da cepa originária de Wuhan, na China.
“No início, ela era muito pouco frequente e encontrada apenas no sudeste da Inglaterra. Mesmo com todas as medidas de controle, sua frequência foi aumentando e hoje já representa cerca de 60% dos novos casos diagnosticados em Londres. Quando fizeram a curva de crescimento, ficou claro que essa cepa tem uma taxa de transmissão maior que as outras”, conta a pesquisadora.
O grande número de mutações na região do genoma que codifica a proteína spike – usada pelo vírus para se ligar ao receptor da célula humana e viabilizar a infecção – tem sido apontado pelos cientistas como a causa do maior potencial de contágio da B.1.1.7 (leia mais em: agencia.fapesp.br/34932/).
O fato é que essas mutações já começam a afetar a sensibilidade dos testes diagnósticos, alerta José Eduardo Levi, pesquisador do IMT-USP, da rede de laboratórios Dasa e um dos responsáveis pela detecção da nova cepa no Brasil.
“Não dei muita bola quando li sobre a descoberta da B.1.1.7 em meados de dezembro. Porém, logo após o Natal, foi divulgado que a cepa era mais transmissível e que os portadores dessa variante apresentavam um resultado positivo, mas anômalo, em alguns testes do tipo RT-PCR. Quando li esse relato me dei conta de que o ensaio que estavam usando no Reino Unido era o mesmo que a gente tinha acabado de implantar na rede Dasa para testes de saliva”, conta Levi.
Como explica o pesquisador, trata-se de um exame do tipo RT-PCR que tem como alvos três genes, sendo um deles o que codifica a proteína spike [S]. Quando o paciente está infectado pela nova variante, o exame dá negativo para o gene S e positivo para os outros dois.
“Tive então a ideia de pedir para a equipe do Dasa analisar todos os testes de saliva que deram positivo – ainda não eram muitos – e selecionar os que apresentavam esse padrão anômalo. Encontramos duas amostras e tentei contato com os pacientes. Uma dessas pessoas contou que havia recebido parentes recém-chegados do Reino Unido. Tive então certeza de se tratar da nova variante, mesmo antes do sequenciamento”, diz.
Levi encaminhou as duas amostras para serem sequenciadas pelos pesquisadores do CADDE e do Lutz e a suspeita se confirmou.
“Sequenciamos o material usando uma tecnologia portátil e barata conhecida como MinION. Em seguida, comparamos o resultado com o genoma de referência [mapeado em 2019, na China] e com outras 127 sequências dessa variante B.1.1.7 disponíveis na plataforma Gisaid, o que permitiu a construção de árvores filogenéticas. Os dados indicam que as amostras correspondem a duas introduções independentes”, conta Flavia Sales, que cursa mestrado na FM-USP sob a orientação de Sabino.
Os pesquisadores ressaltam a importância de monitorar a evolução genômica do vírus para garantir a acurácia dos testes diagnósticos e a eficácia das vacinas.
“Ainda não sabemos se essa nova cepa vai manifestar no Brasil o mesmo comportamento observado no Reino Unido. Tampouco sabemos se as linhagens que estão aqui são mais ou menos transmissíveis. De qualquer modo, os laboratórios que usam esse tipo de kit para exame de RT-PCR [com foco no gene da proteína spike] devem reanalisar seus protocolos”, avalia Sabino.
Levi conta que o Dasa pretende modificar os reagentes usados nos testes de RT-PCR feitos com secreção intranasal (coletados com o cotonete do tipo swab) para que eles também possam detectar esse padrão anômalo nos portadores da nova variante. “Isso poderá ajudar a monitorar como a cepa B.1.1.7 está se disseminando no país”, afirma o pesquisador.