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Comércio popular no Brás passa por processo de ‘empresarização’, mas segue marcado pela instabilidade


Comércio popular no Brás passa por processo de ‘empresarização’, mas segue marcado pela instabilidade

Estudo da UFSCar indica que a transformação do camelô em microempresário torna o negócio atrativo para investidores com maior capacidade financeira e administrativa e isso promove a exclusão dos trabalhadores que iniciaram a atividade em busca de sobrevivência (foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

Publicado em 19/10/2021

Agência FAPESP* – O comércio popular no centro da cidade de São Paulo tem passado por um processo de "empresarização", no qual camelôs são convertidos em microempresários. Apesar disso, a atividade segue marcada pela instabilidade, aponta uma pesquisa de doutorado conduzida na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

O projeto teve como foco o bairro do Brás, que abriga a Feira da Madrugada. Segundo Felipe Rangel, autor da tese, ao tornar o negócio atrativo para investidores com maior capacidade financeira e administrativa, essa transformação promove a exclusão dos trabalhadores que iniciaram a atividade em busca de sobrevivência.

Orientado pelo professor Jacob Carlos Lima e apoiado pela FAPESP, o trabalho acaba de ser reconhecido pela Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (Abet) com o prêmio "Mundos do trabalho em perspectiva multidisciplinar" e deve ser publicado em livro nos próximos meses.

O primeiro contato de Rangel com a região aconteceu em 2014, ainda no mestrado. Estudando o comércio transnacional de mercadorias, o pesquisador chegou ao bairro, onde encontrou no comércio popular um perfil muito diferente do esperado.

"A literatura sobre o trabalhador do comércio informal, de rua, descreve pessoas sem oportunidade no mercado formal, desempregadas e, portanto, que estão ali por conta da urgência, da necessidade absoluta", diz Rangel. "Quando eu cheguei à Feira da Madrugada, me deparei com outro perfil de comerciante. Alguns tinham expectativa de ganhar melhor ali do que no emprego formal. No doutorado, busquei então entender esse processo, o que é também uma maneira de abordar o debate sobre a ressignificação, em empreendedorismo, da informalidade que sempre marcou o mercado de trabalho no Brasil."

Transformações

Foi nas últimas três décadas que a região do Brás se constituiu como importante centro de comércio popular, com grande expansão a partir dos anos 2000, pelo deslocamento para as ruas do bairro do comércio ambulante da madrugada antes instalado na rua 25 de Março.

A partir de 2005, acontece o confinamento da Feira da Madrugada ao Pátio do Pari, antiga área de manobras da ferrovia então usada como estacionamento de ônibus sob administração privada. Hoje, o comércio do bairro – na feira e em galerias e shoppings populares – recebe uma média diária de 400 mil clientes, com faturamento anual estimado em R$ 20 bilhões. Existe também toda uma infraestrutura apoiando esse comércio, com hotéis e pensões, estacionamentos para carros e ônibus e muitos restaurantes, lanchonetes e carrinhos de comida nas ruas.

De abril a dezembro de 2016, Rangel passou cerca de duas semanas por mês na Feira da Madrugada e andando pelas ruas e galerias do Brás. Além da observação cotidiana e da consulta a notícias e outros documentos, o pesquisador realizou 26 entrevistas formais com trabalhadores de seis Estados brasileiros e também de outros países (Vietnã, Paraguai e Paquistão). A partir dessas conversas e da trajetória das pessoas, a tese de Rangel descreve e analisa as transformações no mercado popular de São Paulo.

Essas mudanças são agrupadas sob a ideia de "empresarização", processo marcado pela ação combinada de três dimensões fundamentais: mudanças no espaço físico, na regulação e, por fim, a adaptação subjetiva do que era degradação e precariedade em empreendedorismo.

A mudança no espaço físico busca tirar o comércio ambulante das ruas, acarretando, dentre outras consequências, explosão no valor comercial do metro quadrado no Brás. Já a regulação se dá pelo modelo de formalização centrado na figura do microempreendedor individual (MEI). "Não é mais o projeto de integração de todos em um solo coletivo de direitos, de proteção social. É a formalização empresarial, em que o trabalhador se converte em empresa", descreve Rangel. Desse modelo de formalização, decorre a adaptação subjetiva que leva o trabalhador a se perceber como empreendedor, positivando uma atividade antes estigmatizada e que segue marcada pela instabilidade e pela exclusão.

Rangel registra, na tese, como essa naturalização da instabilidade e a ressignificação positiva do comércio popular como um todo configuram uma inversão histórica. Se antes a insegurança e a precariedade do trabalho no comércio popular eram entendidas como alternativa improvisada ao desemprego, hoje essa atividade, positivada, aparece em contraste às condições precárias experimentadas nas situações de emprego.

"Eu pude perceber, nesse tipo de trabalho, que as pessoas não identificavam mais a possibilidade de mobilidade social e econômica no mercado de trabalho formal", relata o pesquisador, contando como a promessa de ascensão atrai quem nunca esteve no comércio popular antes – até mesmo trabalhadores que abandonam empregos formais para se dedicar à atividade.

"Trata-se, no entanto, de uma formalização excludente, pois formalizar uma atividade não significa formalizar quem está na atividade. Você pode criar um modelo de formalização, e foi isso que aconteceu, que se torna impraticável para quem estava ali antes. É muito caro trabalhar de modo formal no Brás hoje, não é só chegar lá e montar um box. É preciso um nível de investimento impagável para as pessoas que iniciaram esse mercado. Hoje, essas pessoas não conseguem mais trabalhar sob esse modelo de empresarização que formaliza de modo excludente", alerta Rangel.

"A originalidade da tese se encontra na abordagem de uma velha questão, a informalidade, agora na perspectiva do discurso empreendedor nas políticas de formalização que não abrangem todos os trabalhadores, mas apenas aqueles mais consolidados economicamente", avalia o orientador da pesquisa.

A tese de Rangel, defendida em 2019, seguiu sendo desenvolvida em estágio de pós-doutorado e acaba de ser contemplada pela organização escocesa Urban Studies Foundation para período de aprofundamento, por sete meses, na Universidade de Chicago (Estados Unidos).

* Com informações da Coordenadoria de Comunicação Social da UFSCar.
 

Fonte: https://agencia.fapesp.br/37102