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Como a COVID-19 se disseminou no oeste do Acre


Como a COVID-19 se disseminou no oeste do Acre

No primeiro episódio da série Diário de Campo – Vale do Juruá, dois pesquisadores da USP relatam, em vídeo e texto, a viagem à pequena cidade amazônica de Mâncio Lima e os preparativos para a pesquisa que investiga a prevalência da doença na região

Publicado em 23/04/2021

Agência FAPESPMarcelo Urbano Ferreira e Marly Augusto Cardoso, pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) e da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP), respectivamente, investigam, com apoio da FAPESP, a dinâmica de transmissão do SARS-CoV-2, que já matou 650 entre as cerca de 30 mil pessoas contaminadas no Acre. Em agosto, eles ficaram um período em Mâncio Lima, uma pequena cidade perto da fronteira com o Peru, coletando material de pesquisa que fará uma radiografia da COVID-19 na região. No primeiro episódio da série Diário de Campo – Vale do Juruá, da Agência FAPESP, Ferreira e Cardoso relatam, em texto e vídeo, a viagem – em plena pandemia – e os preparativos antes de dar início à pesquisa.

Episódio 1: A partida

O longo e atribulado trajeto de São Paulo a Mâncio Lima

Depoimento de Marcelo Urbano Ferreira à Agência FAPESP

3 de agosto, segunda-feira

O primeiro dia foi todo de viagem. Saímos de casa antes das 4h da manhã, rumo a Guarulhos. Como viajamos com material de pesquisa, sempre procuramos chegar ao aeroporto com muita antecedência, pois o atendente da companhia aérea pode ver algum problema em nossa bagagem.

Desta vez, a enorme caixa de isopor que levamos com grande quantidade de material descartável para uso no campo não despertou suspeitas. Em compensação, o pequeno botijão de transporte de amostras em nitrogênio líquido, que estava completamente vazio, exigiu alguma conversa e explicações. O tal botijão parece uma garrafa térmica bem grande. Vazio como estava, não representa risco algum. No entanto, caso contenha nitrogênio líquido e amostras biológicas, passa a ser classificado como carga perigosa e a empresa aérea não poderia transportá-lo. No final, deu tudo certo. Embarcamos todo o material, que chegou intacto ao destino final.

Os aeroportos estavam cheios, especialmente o de Brasília. No avião, nenhum espaçamento entre os passageiros; todas as poltronas ocupadas. Única adaptação: o (escasso) serviço de bordo deixou de existir. Viajamos de máscara e protetor facial. Parece exagero, mas é preciso.

Em condições normais, pegaríamos em Guarulhos ou Congonhas um voo para Brasília, onde faríamos conexão para Cruzeiro do Sul, com escala (sem sair do avião) em Rio Branco. Desta vez, o voo que saía de Brasília chegava somente até Rio Branco, com escala em Porto Velho. Os voos regulares até Cruzeiro do Sul estão suspensos desde o início da pandemia. O aeroporto local segue aberto, mas somente para pequenos aviões fretados ou particulares. Na escala em Porto Velho, todos desceram do avião para limpeza. Mais aglomeração na sala de embarque e na entrada e saída do avião.

Porto Velho foi a primeira cidade da Amazônia que conheci. Vim pela primeira vez em abril de 1990, para trabalhar em um projeto sobre malária. Morei no local por um ano e fiz muitas visitas até meados dos anos 1990. Daí em diante, estive poucas vezes na cidade, que mudou muito. Mas o rio Madeira, o maior afluente da margem direita do Amazonas, continua imponente, com sua água barrenta e cheia de troncos de árvore flutuando – daí seu nome. Mas, durante a escala, ficamos somente na sala de embarque. Nem sequer pude ver o aeroporto, totalmente reformado e ampliado.

Chegamos a Rio Branco pouco antes das 13h30, no horário local, mas não entramos na cidade. Do próprio aeroporto, saímos de carro alugado diretamente para Cruzeiro do Sul, no caminho oposto ao do centro da cidade. A visita a Rio Branco, cidade de que gosto muito, ficará para a volta.

Nunca morei em Rio Branco. No entanto, durante os mais de dez anos de trabalho de pesquisa em Acrelândia (distante 120 km), a capital do Acre sempre foi nosso ponto de chegada, de saída e de apoio. Assim, acabei conhecendo bem a cidade, que visitei pela primeira vez em janeiro de 1991. Em Rio Branco, temos até hoje muitos amigos e ex-alunos.

Uma curiosidade: meu avô paterno nasceu em Rio Branco – mais precisamente, no seringal Nova Empresa, que daria origem à cidade alguns anos depois. Na virada do século 19 para o 20, o Acre pertencia à Bolívia – portanto, meu avô, de família cearense, nasceu em território boliviano. A história é mais ou menos a seguinte: Meu bisavô, cearense de Fortaleza, veio ao Acre trabalhar (creio que como guarda-livros, ou seja, contabilidade) no seringal de um primo (Neudo Maia), o tal Nova Empresa. Neudo Maia é o fundador de Rio Branco. Mas meu bisavô retornou ao Ceará pouco tempo depois (nunca soube exatamente quantos anos ele ficou por aqui) com seu filho – meu avô – ainda bebê. Nunca mais retornaram. Desse modo, meu avô não tinha recordações da vida de seringal – a maior lembrança do Acre estava em sua cédula de identidade.

Há uns dez anos, a viagem de Rio Branco a Cruzeiro do Sul podia levar muitos dias. A estrada, ainda não totalmente asfaltada, ficava oficialmente fechada ao tráfego de veículos durante toda a estação de chuvas. Com o asfaltamento, faz-se a viagem em um dia, mas tudo depende do tipo de veículo e da experiência do motorista com os buracos do caminho.

Este é o trecho final da rodovia BR-364, que liga o Sudeste e o Centro-Oeste à Amazônia Ocidental. Oficialmente, a estrada começa em Limeira (SP), como via Marechal Rondon. Corta Minas Gerais e Goiás e chega ao Mato Grosso. Passa por Cuiabá, Porto Velho, Rio Branco, Cruzeiro do Sul, terminando em... Mâncio Lima, nosso destino final! São 4.230 km.

De Rio Branco a Mâncio Lima, são uns 760 km. Uns 30 km antes, passamos por Cruzeiro do Sul. Como saímos de Rio Branco pouco depois das 14h, não havia como chegar a Mâncio Lima antes do anoitecer. Assim, planejamos o pernoite no meio do caminho, na cidade de Feijó. Às margens do rio Envira, Feijó é conhecida pelo açaí de muito boa qualidade. O que não estava nos planos eram os buracos na estrada pouco antes de chegar a Feijó, já no escuro. Entramos na cidade às 19h30.

4 de agosto, terça-feira

O segundo dia foi ainda de viagem, iniciada em Feijó às 8h da manhã. Na direção de Cruzeiro do Sul, temos somente mais um município no caminho – Tarauacá, a terra do famoso abacaxi gigante. Mas não entramos na cidade; seguimos diretamente para Cruzeiro do Sul, onde almoçamos. Daí, uma passagem pelo laboratório de apoio, na Universidade Federal do Acre (UFAC), e a chegada a Mâncio Lima, onde alugamos um apartamento. registros de Feijó e da segunda metade do caminho, entre Feijó e Mâncio Lima.

No caminho, passamos também pela terra indígena do povo Nukinin, cortada pela BR-364. A escola, em forma de ocas, é muito interessante.

Há dez anos a USP mantém um laboratório de campo no campus da Floresta da UFAC em Cruzeiro do Sul. Quem o coordena é Rodrigo Medeiros de Souza, professor da UFAC, que fez seu doutorado no ICB-USP. O laboratório está plenamente equipado para os projetos de pesquisa que executamos na região, predominantemente sobre malária, muitos deles em conjunto com o professor Rodrigo, um ótimo companheiro de trabalho. Em breve, retomaremos um projeto de cultivo de curto prazo de Plasmodium vivax, um parasita particularmente refratário à vida in vitro, que tivemos de interromper em março. E, em outubro, voltaremos à região para fazer um amplo estudo sorológico de COVID-19, em conjunto com nossa pesquisa longitudinal sobre malária em Mâncio Lima.

No laboratório da UFAC, buscamos alguns itens adicionais para o trabalho, tais como luvas, pipetas e tubos, que temos em estoque por lá. As atividades de ensino e pesquisa no campus ainda estão interrompidas, mas temos uma autorização especial de acesso ao laboratório em função do projeto sobre COVID-19.

Chegada a Mâncio Lima, limpeza e arrumação do apartamento, compras de mantimentos. Assim, termina o segundo dia, em meio à luta contra a internet lenta...

Acompanhe no boletim de terça-feira (20/10) o segundo episódio da série Diário de Campo – Vale do Juruá.

Fonte: https://agencia.fapesp.br/34385