Em artigo publicado na BMC Biology, pesquisadores da USP comparam fenômeno observado na espécie E. coli à “tragédia dos comuns”, quando interesses individuais se sobrepõem ao objetivo coletivo. Segundo os autores, tal fato mascara o surgimento de variantes bacterianas e faz a taxa de mutações da colônia parecer menor (imagem: Wikimedia Commons)
Publicado em 12/04/2021
Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – Farinha pouca, meu pirão primeiro. O ditado popular que remete à dificuldade do ser humano de colocar o bem comum acima de interesses individuais parece valer também para bactérias como a Escherichia coli, de acordo com estudo conduzido na Universidade de São Paulo (USP) e publicado na revista BMC Biology.
No artigo, o grupo coordenado pelo professor do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP) Beny Spira mostra que, em situações de escassez, a competição por nutrientes e a falta de cooperação entre os indivíduos de uma mesma população impedem que mutantes mais bem adaptados ao meio prosperem, exceto os que se organizam em pequenos agrupamentos. Isso mascara o surgimento de novas variantes bacterianas, fazendo com que a taxa de mutações pareça menor do que é na realidade.
Como explica Spira, a frequência de mutações – que vão surgindo e se acumulando de uma geração para a outra – é determinante para a evolução de uma determinada espécie. Compreender a origem das mutações é importante para explicar processos biológicos diversos. No caso de bactérias, isso permite, por exemplo, compreender a potencial divergência evolutiva de um patógeno em uma epidemia ou ainda a resistência de bactérias a antibióticos.
No artigo, os pesquisadores descrevem que em colônias de E. coli ocorre algo parecido com a tragédia dos comuns. O termo emprestado da sociologia e da ecologia costuma ser usado quando interesses individuais se sobrepõem a um objetivo coletivo, resultando na destruição de bens públicos ou de recursos naturais.
“Em momentos de escassez nutricional, as bactérias não interagem entre si para atingir o bem comum, ou seja, o crescimento da colônia. Verificamos que, mesmo com o surgimento de alguns indivíduos capazes de utilizar a fonte nutricional disponível, essa falta de cooperação faz com que toda a população saia perdendo. Apenas alguns poucos mutantes conseguem se multiplicar e formar novas colônias”, diz o autor do artigo.
O achado explica uma antiga questão: na prática, a frequência de variantes capazes de clivar determinados nutrientes (quebrar em moléculas menores que podem ser metabolizadas) era sempre muito menor do que o esperado na teoria. O trabalho sobre o mascaramento da frequência de mutantes é fruto de estudo apoiado pela FAPESP por meio de um Auxilio à Pesquisa Regular, uma Bolsa de Doutorado e outra de Iniciação Científica.
Tragédia dos comuns
Ao contrário da E. coli selvagem, bactérias com mutações do tipo PHO-constitutiva superexpressam a enzima fosfatase alcalina. Com isso, elas são capazes de clivar glicerol-2-fosfato (G2P) e liberar glicerol – o que configura uma importante fonte de carbono em situações de escassez nutricional.
No entanto, a frequência de colônias PHO-constitutivas na placa de cultura contendo G2P é excepcionalmente baixa. “Quando medimos a real frequência de mutantes, constatamos que, em uma população de 100 bilhões de bactérias, há dezenas de milhares de mutantes PHO-constitutivos. No entanto, apenas entre 50 e 100 desses mutantes conseguem se multiplicar e produzir novas colônias com a mutação que lhes confere a capacidade de clivar G2P”, explica Spira à Agência FAPESP.
Como explica o pesquisador, o mutante é capaz de expressar altas quantidades da enzima fosfatase alcalina, que fica compartimentada no periplasma da célula (região que fica entre a membrana interna e a membrana externa, que rodeia o citoplasma de muitas bactérias). Dessa forma, quando o G2P é clivado, formando o glicerol, esse nutriente pode ser captado pela bactéria ou vazar para o meio externo, onde será prontamente captado pelo grande número de bactérias selvagens (não mutantes) que se encontram ao redor.
No entanto, o glicerol liberado pelo mutante não é suficiente para o crescimento de colônias das bactérias selvagens (para cada mutante, há 20 mil bactérias selvagens ao seu redor). “Os poucos mutantes que conseguem se multiplicar são aqueles que cooperam entre si, formando aglomerados [clusters], e trocando glicerol um com o outro. Caso contrário, o nutriente fica escasso, os mutantes são inibidos e a população se extingue”, diz.
Spira explica que, normalmente, ocorre uma disputa entre as bactérias selvagens e suas variantes pelo glicerol insuficiente. “Por causa da escassez desse nutriente, as bactérias mutantes não se multiplicam, dando a impressão de que as mutações não ocorreram de fato e reduzindo drasticamente a frequência de mutantes PHO-constitutivos na população”, conta.
Dessa forma, o pesquisador ressalta que a inibição de mutantes PHO-constitutivos fornece um exemplo de taxa de mutação mascarada pela competição entre mutantes e suas células ancestrais. “O exemplo mostra que casos semelhantes a uma ‘tragédia dos comuns’ podem ocorrer em diversos ambientes e devem ser levados em consideração ao estimar taxas de mutação”, diz.
O artigo Competition for nutritional resources masks the true frequency of bacterial mutants (doi: 10.1186/s12915-020-00913-1), de Henrique Iglesias Neves, Gabriella Trombini Machado, Taíssa Cristina dos Santos Ramos, Hyun Mo Yang, Ezra Yagil e Beny Spira, pode ser lido em https://bmcbiol.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12915-020-00913-1#Abs1.