Estudo divulgado no British Journal of Pharmacology comprova que a inibição farmacológica da enzima epóxido hidrolase solúvel pode prevenir a perda óssea e outras complicações da periodontite ao reduzir a liberação de mediadores inflamatórios e favorecer processos de cicatrização (foto: cookie_studio/Freepik)
Publicado em 02/08/2023
Cristiane Paião | Agência FAPESP – A periodontite (ou doença periodontal) é uma infecção bacteriana que acomete os tecidos, ligamentos e ossos que envolvem e sustentam os dentes. Nos casos mais graves, pode levar a sangramentos, ao amolecimento dos dentes e até à perda óssea. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a estimativa é que a doença afete cerca de 3,5 bilhões de pessoas no mundo. Aqui no Brasil, segundo dados do último Levantamento Nacional de Saúde Bucal (SB Brasil 2010), esta é uma das principais causas da perda dentária em adultos. Diminuir o impacto da doença, portanto, significa proporcionar mais qualidade de vida e autoestima à população.
Estudo com roedores feito no Centro de Pesquisas Odontológicas da Faculdade São Leopoldo Mandic, em Campinas (SP), identificou um composto capaz de combater a inflamação crônica das gengivas. Nomeada 1-trifluoromethoxyphenyl-3-(1-propionylpiperidin-4-yl) urea (TPPU), a molécula inibe a ação da enzima epóxido hidrolase solúvel (EHS) e, assim, o organismo é estimulado a produzir substâncias anti-inflamatórias, entre elas metabólitos de ácidos graxos poli-insaturados (similares às gorduras do tipo ômega presentes em peixes e frutas oleaginosas, como nozes e abacate). Esses mediadores têm alta capacidade de conter inflamações exageradas e estimular a reparação de tecidos danificados do nosso organismo.
A investigação foi conduzida com apoio da FAPESP (projetos 19/22645-0 e 17/22334-9) durante o pós-doutorado de Henrique Ballassini Abdalla, hoje professor da Faculdade São Leopoldo Mandic. Os resultados foram publicados no British Journal of Pharmacology.
“O que a gente tem no mercado, atualmente, são agentes anti-inflamatórios, ou seja, que apenas interrompem o processo inflamatório bloqueando uma série de mediadores. Não são agentes que vão modular a capacidade do organismo de produzir uma resposta resolutiva do processo inflamatório”, explica Abdalla, cuja pesquisa foi supervisionada por Marcelo Henrique Napimoga, em parceria com Thomas E. Van Dyke (Forsyth Institute) e Bruce Hammock (University of California, Davis), ambos dos Estados Unidos.
A proposta do grupo é buscar um fármaco capaz de induzir o organismo a combater o agente agressor e, ao mesmo tempo, modular o processo inflamatório para que não se torne exagerado e, consequentemente, danoso.
“Nós já vimos que esse mecanismo funciona. Consegue inibir a progressão da doença periodontal. Então, alguns questionamentos surgem a partir de agora no sentido de, por exemplo, será que a gente consegue formar osso? Será possível induzir uma regeneração dos tecidos danificados? Uma coisa é impedir a progressão da doença, ou seja, que haja perda óssea e lesão tecidual. Mas a pergunta agora é o contrário: uma vez que o tecido já está lesionado, será possível promover a regeneração? Voltar aos níveis ósseos anteriores, com a mesma função?”, questiona Abdalla.
Descobertas
Como explicam os autores, uma das células importantes para o processo inflamatório são os macrófagos (células do sistema imunológico). O estudo mostrou que a inibição da enzima EHS modula a resposta dos macrófagos e, com isso, há uma melhora da inflamação, favorecendo os processos de reparação e cicatrização dos tecidos. Os dados abrem novas perspectivas para o uso desses inibidores em futuras pesquisas, já que ainda não havia evidências dessa relação.
“A intensidade e o tipo de resposta do sistema imunológico durante o processo inflamatório determinam o equilíbrio entre a destruição ou integridade dos tecidos e as ações de resolução dessa condição. O conjunto dos dados in vivo e in vitro sugere que a inibição farmacológica da enzima epóxido hidrolase solúvel previne a perda óssea ao reduzir a grande quantidade de mediadores inflamatórios, estimulando os macrófagos a controlar a inflamação, juntamente com um aumento dos mediadores especializados pró-resolutivos [moléculas que induzem o término da resposta inflamatória], estimulando principalmente as lipoxinas e resolvinas da série E”, explica Napimoga.
Segundo o pesquisador, em geral, os pacientes não entendem como a doença evolui, o que pode fazer com que demorem para procurar o tratamento correto. O sintoma inicial, muitas vezes, é a gengiva inflamada, mas, com o passar do tempo, ela começa a sangrar quando se utiliza o fio dental, podendo ocorrer o amolecimento dos dentes.
“A inflamação se agrava e, nos piores cenários, a extração se faz necessária. Mas aí outros problemas vêm adjacentes à perda do dente, como instabilidade da mordida, perda da densidade e do volume ósseo. Assim, garantir a saúde dental e dos tecidos que compõem o periodonto gengival é garantir uma saúde bucal por completo”, defende Abdalla.
Próximos passos
Segundo Abdalla, os resultados do projeto poderão contribuir com estudos relacionados às terapias regenerativas. Em uma próxima etapa, pretende-se simular como as células poderiam produzir mais colágeno ou matriz óssea. Isso poderia ajudar, possivelmente, a produzir novos produtos ou medicamentos para humanos e também veterinários.
“Nos animais que participaram do estudo, nós avaliamos, por exemplo, se houve perda óssea. E definimos uma dosagem para testar o fármaco. Observamos que ela foi capaz de manter os mesmos parâmetros ósseos de um animal intacto, ou seja, é possível que no futuro a gente consiga terapias baseadas na inibição da enzima, criando produtos e/ou medicamentos que ajudem no tratamento dessas condições”, destaca.
Segundo Abdalla, poderão ser desenvolvidos produtos como enxaguantes bucais, ou até mesmo medicamentos com liberação controlada de fármacos diretamente na mucosa da boca, como géis, para que possam agir em tecidos lesionados na gengiva ou próximos aos dentes, até mesmo em cirurgias, para acelerar o processo de cicatrização e regeneração.
“Em pacientes com periodontite, a terapia mecânica é indispensável e consiste na remoção do tártaro nos dentes acima e abaixo da gengiva. Nosso inibidor entraria como um complemento a essa terapia, favorecendo o organismo a responder de forma adequada ao processo inflamatório, bem como a regenerar um osso perdido, por exemplo”, explica o pesquisador.
Hoje já se sabe que as bactérias patogênicas associadas à doença periodontal podem ir para outros órgãos, como o intestino e coração, e causar várias doenças. “Estudos mostram que várias bactérias da cavidade bucal foram encontradas no cérebro, induzindo processos neurodegenerativos e podendo estar associadas com o agravamento do Alzheimer, por exemplo. Portanto, há muito o que investigar”, aponta o pesquisador.
“É importante ressaltar que, dentre os mediadores especializados pró-resolutivos, aqueles que aumentaram seus níveis na saliva foram os da família das lipoxinas [Lipoxina A4] e das resolvinas da série E [RvE1 e RvE2]. E mais, seus respectivos receptores estavam aumentados na gengiva. Ou seja, houve maior disponibilidade desses mediadores e mais locais de ligação para eles atuarem. Ambos os mediadores têm papel fundamental na resolução do processo inflamatório em nosso organismo. Por exemplo, é visto que pacientes com periodontite apresentam, de maneira geral, baixos níveis de lipoxinas e resolvinas, reforçando o seu papel regulador na doença periodontal”, ressalta Abdalla.
O artigo Soluble epoxide hydrolase inhibition enhances production of specialized pro-resolving lipid mediator and promotes macrophage plasticity pode ser lido em: https://bpspubs.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/bph.16009.