Espécie dócil conhecida como marmelada tem todas as operárias estéreis e apresentou sequências de genes encontradas em outras abelhas sociais, mostrando conservação de características ancestrais; a Frieseomelitta varia produz pouco mel, mas vem despertando interesse econômico como polinizadora (foto: Fototeca Cristiano Menezes)
Publicado em 29/04/2021
André Julião | Agência FAPESP – Um consórcio de pesquisadores de seis universidades brasileiras, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela FAPESP, sequenciou o genoma da Frieseomelitta varia, abelha sem ferrão nativa do Brasil conhecida como marmelada. O resultado aumenta a compreensão sobre a evolução destas abelhas e abre caminho para o melhoramento de espécies com potencial de uso comercial.
Os resultados foram publicados na BMC Genomics por pesquisadores das universidades de São Paulo (USP), Estadual Paulista (Unesp), Federal de São Carlos (UFSCar), Federal de Alfenas (UFAL), Federal do Vale do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) e Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
“Escolhemos uma espécie para realizar esse projeto-piloto, a fim de testar nossa capacidade de sequenciar um genoma inteiro. Essa é uma espécie emblemática, uma vez que suas operárias são completamente estéreis. É uma característica que a difere da grande maioria das abelhas do grupo Meliponini, das abelhas sem ferrão”, diz Klaus Hartmann Hartfelder, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP e um dos autores do trabalho.
O estudo integra um projeto apoiado pela FAPESP e coordenado por Zilá Luz Paulino Simões, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP e coautora do artigo. O sequenciamento foi realizado no Laboratório Central de Tecnologias de Alto Desempenho em Ciências da Vida (LaCTAD) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), também apoiado pela FAPESP.
O sequenciamento revelou uma grande quantidade de sequências repetidas dos chamados RNAs longos não codificantes, que têm função regulatória. Em humanos, por exemplo, esses RNAs estão relacionados a processos de regulação do desenvolvimento, inclusive do sistema nervoso central. Na marmelada, os pesquisadores consideram que essas sequências podem estar ligadas ao processo de desenvolvimento do ovário das abelhas, que torna as operárias completamente estéreis, enquanto a rainha é altamente fértil.
“Como na grande maioria dos insetos sociais, os ovos são iguais, dali pode sair tanto uma operária quanto uma rainha. Durante o desenvolvimento da larva, porém, acontece a divergência em algumas das vias moleculares de sinalização, que faz com que essas abelhas se diferenciem em dois tipos de indivíduos, a rainha fértil e muitas operárias inférteis. Na abelha europeia (Apis mellifera) isso se dá por conta da alimentação diferente que a rainha recebe na fase larval, mas nas abelhas sem ferrão parece ser mais uma questão de quantidade de alimento”, diz Hartfelder.
Vantagem evolutiva
O grupo encontrou ainda um alto grau de conservação (sintenia) de um bloco de genes descrito na Apis mellifera relacionado ao comportamento de estocagem de pólen dentro da colônia. Essa é uma característica de espécies altamente sociais, enquanto outras coletam apenas o pólen suficiente para alimentar as larvas.
“O que nos surpreendeu é que a A. mellifera e as abelhas sem ferrão divergiram em linhagens diferentes há mais de 70 milhões de anos. É muito tempo e, mesmo assim, essa característica foi se mantendo ao longo da evolução. Temos de verificar se o mesmo acontece com outras abelhas para saber se isso ocorreu por puro acaso ou se garantiu uma vantagem evolutiva”, explica o pesquisador.
Outro achado interessante foi a diferença de outras abelhas na organização da ordem dos genes do genoma mitocondrial, que também foi sequenciado nesse trabalho. A alteração na ordem gênica da usina de energia da célula pode ter implicações evolutivas a serem estudadas com mais profundidade no futuro.
Polinização em cultivo de alimentos
O nome popular da espécie faz referência à cor de seus ninhos, que tem um revestimento externo marrom por conta da aplicação de resina que as abelhas coletam de plantas. O material tem propriedades repelentes, o que afasta formigas e outros potenciais invasores do local de entrada.
A espécie produz pouco mel, mas por sua docilidade e larga distribuição, principalmente no Sudeste do Brasil, tem potencial para servir como polinizadora em cultivos de alimentos de alto valor agregado em estufas. A abelha europeia não se adapta bem a esses ambientes fechados, mas as abelhas sem ferrão têm grande potencial como polinizadores destes cultivos.
As descobertas do genoma da marmelada servem ainda de guia para a busca de características desejadas em outras espécies de interesse comercial, como a jataí (Tetragonisca angustula).
No trabalho atual, o grupo utilizou a experiência adquirida nos sequenciamentos de genomas de abelhas realizados por consórcios internacionais. Em 2006, os pesquisadores fizeram parte do grupo que sequenciou o genoma da Apis mellifera, a abelha europeia mais usada na produção de mel. O resultado foi publicado na Nature.
Em 2015, o grupo participou de um trabalho publicado na Science que sequenciou 10 genomas de abelhas, entre eles o da mandaçaia (Melipona quadrifasciata), a primeira espécie brasileira de abelhas sem ferrão a ter o genoma sequenciado. No mesmo ano, participou ainda da publicação do genoma de duas mamangavas, insetos da mesma linhagem das abelhas do gênero Apis e das abelhas sem ferrão.
O próximo passo da pesquisa é estudar melhor algumas regiões que chamaram atenção do genoma da marmelada. Além disso, graças ao conhecimento adquirido durante o trabalho, o grupo já selecionou outras cinco espécies que terão o genoma sequenciado.
O artigo The nuclear and mitochondrial genomes of Frieseomelitta varia – a highly eusocial stingless bee (Meliponini) with a permanently sterile worker caste pode ser lido em: https://bmcgenomics.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12864-020-06784-8.