A pneumologista Elnara Negri, que atua no Hospital das Clínicas da USP e no Sírio-Libanês, defende o uso do anticoagulante heparina para tratar as complicações causadas pelo novo coronavírus (imagem: microtrombo formado no alvéolo pulmonar/Journal of Thrombosis and Haemostasis)
Publicado em 12/05/2021
Karina Toledo | Agência FAPESP – A hipótese de que distúrbios de coagulação sanguínea estariam na base dos sintomas mais graves da COVID-19 – entre eles insuficiência respiratória e fibrose pulmonar – foi aventada por pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) em meados de abril.
Em menos de um mês, o tema ganhou destaque em reportagens publicadas nos sites da Science e da Nature, duas das mais importantes publicações científicas internacionais.
Entre as primeiras pessoas a perceber o “caráter trombótico” da doença causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) está a médica Elnara Negri, que atua no Hospital das Clínicas da FM-USP e também no Hospital Sírio-Libanês.
“Foi por volta do dia 25 de março. Tratávamos uma paciente cuja função respiratória piorava rapidamente e, quando ela foi entubada, percebi que seu pulmão era fácil de ventilar. Não estava enrijecido, como seria esperado em alguém com síndrome do desconforto respiratório agudo. Logo depois notei que essa pessoa apresentava isquemia em um dos dedos do pé”, conta Negri à Agência FAPESP.
O sintoma, que tem sido chamado de COVID toes (dedos do pé de COVID), é causado pela obstrução de pequenos vasos que irrigam os dedos dos pés. Negri já havia observado fenômeno semelhante, muitos anos atrás, em pacientes submetidos a aparelhos de circulação extracorpórea durante cirurgia cardíaca.
“O equipamento que se usava antigamente bombeava oxigênio no sangue e induzia a formação de coágulos no interior dos vasos. Eu já tinha visto aquele quadro e sabia como tratar”, afirma.
A médica prescreveu heparina, um dos medicamentos anticoagulantes mais usados no mundo, e em menos de 18 horas o nível de oxigenação da paciente melhorou. O dedinho do pé, antes vermelho, ficou cor-de-rosa. O efeito se repetiu em outros casos atendidos no Sírio-Libanês. “Após esse dia, tratamos cerca de 80 pacientes com COVID-19 e, até agora, ninguém morreu. Atualmente, quatro estão na UTI [Unidade de Terapia Intensiva] e os demais ou estão na enfermaria ou já foram para casa”, diz.
Enquanto a maioria dos estudos indica que casos graves de COVID-19 necessitam, em média, de 28 dias de ventilação mecânica para recuperação, os pacientes tratados com heparina geralmente melhoram entre o 10o e o 14o dia de tratamento intensivo.
A experiência clínica com as primeiras 27 pessoas submetidas ao protocolo desenvolvido no Sírio-Libanês foi descrita em artigo disponível na plataforma medRxiv ainda em versão preprint (sem revisão por pares).
Evidências patológicas
Logo após a primeira experiência bem-sucedida com heparina, Negri compartilhou o achado com seus colegas do Departamento de Patologia da FM-USP Marisa Dolhnikoff e Paulo Saldiva, que estão coordenando as autópsias de pessoas que morreram em decorrência da COVID-19 no Hospital das Clínicas (mais informações em: https://youtu.be/rmaNk_fQkC0).
Por meio de procedimentos minimamente invasivos, desenvolvidos durante um projeto apoiado pela FAPESP, os patologistas haviam observado a existência de focos hemorrágicos na rede de pequenos vasos do pulmão, associados à presença de microtrombos – pequenos coágulos formados pela agregação de plaquetas (leia mais em: agencia.fapesp.br/32882 e agencia.fapesp.br/32774).
Juntos, os pesquisadores da FM-USP redigiram o primeiro artigo da literatura científica que descreveu “evidências patológicas de fenômenos trombóticos pulmonares em COVID-19 grave”. O trabalho, revisado por pares e aceito para publicação no Journal of Thrombosis and Haemostasis, tem potencial para revolucionar o tratamento da doença.
Mudança de paradigma
O SARS-CoV-2 não foi o primeiro coronavírus a causar uma crise de saúde pública. Entre os anos de 2002 e 2003, quase 800 pessoas morreram em decorrência da síndrome respiratória aguda grave (SARS, na sigla em inglês) no mundo e, desde 2012, aproximadamente 850 foram vitimadas pela síndrome respiratória do oriente médio (MERS, na sigla em inglês). Nenhuma das duas doenças chegou ao Brasil até o momento.
“Pacientes com SARS ou com MERS desenvolvem uma forte reação inflamatória no pulmão, que pode levar ao desenvolvimento de um quadro conhecido como síndrome do desconforto respiratório agudo. Os alvéolos pulmonares – aqueles pequenos sacos onde ocorrem as trocas gasosas – ficam cheios de células mortas, pus e outras substâncias inflamatórias. Isso faz o pulmão ficar duro e impede a oxigenação adequada do organismo”, explica Negri.
Segundo a médica, o que ocorre em pacientes com COVID-19 é diferente – pelo menos no início. O SARS-CoV-2 não causa uma inflamação muito forte no pulmão, mas induz a descamação do tecido epitelial existente no interior dos alvéolos.
“As células epiteliais morrem após serem infectadas, caem para a luz alveolar e deixam a membrana basal exposta. O sistema de defesa do organismo entende que a região está em ‘carne viva’ e que há risco de hemorragia. Tem início uma tempestade de interleucinas [proteínas que atuam como sinalizadores imunes] que ativa o que chamamos de ‘cascata de coagulação’. As plaquetas começam a se agregar para formar trombos e estancar o suposto vazamento”, explica Negri.
Os coágulos acabam obstruindo pequenos vasos do pulmão e causando microinfartos. As regiões do tecido que morrem por falta de irrigação dão lugar a tecido cicatricial – processo conhecido como fibrose. Além disso, os microtrombos que se formam na interface do alvéolo com os vasos sanguíneos impedem a passagem do oxigênio para as pequenas artérias.
“Isso explica por que pacientes com COVID-19 podem não sentir dificuldade para respirar mesmo estando com uma saturação muito baixa de oxigênio. Muitos chegam ao hospital andando e falando e logo depois precisam ser entubados”, diz.
Caso não se trate o quadro de coagulação intravascular rapidamente, os pontos de infarto e de fibrose tendem a se espalhar pelo pulmão. Bactérias ou fungos oportunistas podem infectar o tecido lesionado e causar pneumonia, uma vez que o SARS-CoV-2 induz a diminuição das células de defesa (linfopenia). Eventualmente, no final desse processo, o paciente pode desenvolver a síndrome do desconforto respiratório agudo.
Negri observou que a heparina ajuda a impedir que isso ocorra por dois mecanismos: o fármaco desfaz os microtrombos que impedem o oxigênio de passar do alvéolo para as pequenas artérias pulmonares e, além disso, ajuda na recuperação do endotélio vascular, a camada de células epiteliais que recobre o interior dos vasos sanguíneos.
“O endotélio lesionado é como uma estrada esburacada, que dificulta o fluxo sanguíneo e induz a formação de novos coágulos. E isso gera um efeito bola de neve”, explica a médica.
Um terceiro possível mecanismo de ação da heparina foi descrito em estudo recente conduzido na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), com apoio da FAPESP. A equipe coordenada pela biomédica Helena Bonciani Nader verificou in vitro que o fármaco pode reduzir em até 70% a infecção de células pelo novo coronavírus (leia mais em: agencia.fapesp.br/33125).
“Talvez exista um efeito antiviral, que ainda precisa ser mais bem estudado. Costumo dizer que estamos trocando o pneu com o carro andando”, diz Negri.
Para a pneumologista, porém, o fato de muitas pessoas diagnosticadas com COVID-19 terem sido tratadas, desde o início, como casos de síndrome do desconforto respiratório agudo – mantidas na UTI com menor nível de hidratação e ventilação mecânica mais intensa – pode ter custado muitas vidas. “Essas duas abordagens agravam o quadro trombótico. O tratamento requer uma mudança de paradigma”, afirma.
Negri defende que a intervenção com anticoagulante comece assim que se comprove que a saturação de oxigênio está abaixo de 93%, o que pode ocorrer entre o sétimo e o 10o dia após o início dos sintomas gripais e é possível de ser detectado em consultório médico ou Unidade Básica de Saúde (UBS).
“Mas não adianta comprar o remédio na farmácia e tomar por via oral. Desse modo não há efeito terapêutico e ainda pode induzir uma hemorragia”, alerta. “O tratamento deve ser injetável e a dose ajustada pelo médico.”
Vale ressaltar que os efeitos da heparina sobre diversos processos fisiológicos são expressivos e sua administração sem supervisão médica resulta em importante risco à vida. No tratamento da COVID-19, a automedicação, sem atenção especial aos efeitos adversos, pode colocar em risco a saúde dos pacientes.
Evidência definitiva
Para comprovar a eficácia da heparina no tratamento da COVID-19 ainda é preciso fazer um ensaio clínico randomizado, ou seja, separar dois grupos de pacientes com características semelhantes aleatoriamente e tratar apenas um deles com o fármaco, para em seguida comparar os resultados com os observados no grupo não tratado.
Os pesquisadores da FM-USP planejam iniciar em breve um projeto com essa finalidade em parceria com grupos da Universidade de Toronto (Canadá) e da Universidade de Amsterdã (Países Baixos). Aguardam apenas aprovação do Comitê de Ética do Hospital das Clínicas e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).
“A ideia é tratar com heparina aqueles pacientes que acabaram de chegar ao pronto-socorro com queda na saturação [de oxigênio] e observar se com o tratamento anticoagulante é possível evitar a ventilação mecânica”, conta.