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Crianças com microcefalia causada por zika têm desenvolvimento neurológico heterogêneo, revela estudo


Crianças com microcefalia causada por zika têm desenvolvimento neurológico heterogêneo, revela estudo

Resultado de avaliações feitas em bebês entre 2 e 3 anos pode contribuir com uma abordagem personalizada no tratamento. Pesquisa envolveu cientistas da UFBA, da USP e de Yale e foi divulgada na PLOS ONE (foto: Sumaia Villela/Agência Brasil)

Publicado em 08/10/2021

Luciana Constantino | Agência FAPESP – Pesquisa realizada em Salvador (BA) mostrou que crianças com microcefalia causada pelo vírus zika têm desenvolvimento neurológico heterogêneo ao chegar à faixa entre 2 e 3 anos de idade. Essa variedade de perfil pode ser detectada por meio de uma avaliação neurológica, permitindo, assim, uma abordagem personalizada do tratamento.

O estudo, publicado na revista PLOS ONE, acompanhou 42 bebês com idade entre 24 e 40 meses nascidos com a síndrome congênita do zika (CZS, na sigla em inglês), como é chamado o conjunto de sequelas provocadas pela infecção durante a gestação.

No geral, essas crianças apresentaram paralisia cerebral em grau elevado (nível 5, o mais alto do Sistema de Classificação da Função Motora Grossa; pessoas nessa condição precisam de cadeira de rodas para se locomover) e graves atrasos de cognição, linguagem, motores e neurológicos, entre eles espasticidade bilateral – um distúrbio caracterizado por tensão, rigidez e incapacidade de controlar os músculos. No entanto, por meio de dois tipos de avaliação, os pesquisadores também captaram uma heterogeneidade no desenvolvimento. Essa diferença pode ser constatada, por exemplo, na variação do grau de comprometimento da resposta da criança a estímulos externos.

Os bebês passaram por avaliações neurológicas e de neurodesenvolvimento por meio do Exame Neurológico Infantil Hammersmith (HINE), considerado curto e de fácil aplicação, e da Escala Bayley de Neurodesenvolvimento Infantil (Bayley-III). As melhores pontuações nas avaliações neurológicas (HINE) foram associadas a resultados mais positivos no neurodesenvolvimento (Bayley-III). No entanto, mesmo entre os casos mais graves, houve diferentes pontuações, evidenciando a heterogeneidade.

Além disso, o estudo descobriu que um tamanho maior da cabeça do bebê (perímetro cefálico) estava associado a um maior nível cognitivo e motor. Na amostragem, as crianças tinham perímetro cefálico menor que 31,9 cm e 31,5 cm, respectivamente, para meninos e meninas. Essa é a medida padrão estabelecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para identificar casos suspeitos de microcefalia.

“A maior parte das pesquisas compara crianças expostas no útero ao vírus zika e as divide em grupos com e sem microcefalia. Mostram, no primeiro caso, pior prognóstico com desenvolvimento neurológico baixo e, no segundo, risco dos mesmos problemas em grau mais leve. Nosso estudo incluiu somente crianças com síndrome congênita do zika e avaliou os diferentes graus dos sintomas neurológicos para entender as diferenças individuais, e não apenas como um grupo que pode ter desenvolvimento e acompanhamento único”, explica o pesquisador Juan Pablo Aguilar Ticona, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA), primeiro autor do artigo.

O trabalho recebeu apoio da FAPESP no âmbito do Projeto Temático “Descoberta de antígenos e desenvolvimento de métodos de diagnóstico sorológico e estratégias vacinais contra o vírus zika”, que tem como pesquisadores responsáveis os professores Luís Carlos de Souza Ferreira e Edison Luiz Durigon, ambos do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP). A orientação ficou com os professores Albert Ko, da Universidade Yale, e Federico Costa, da UFBA.

Aguilar Ticona afirma que alguns estudos já usaram HINE para avaliar bebês com microcefalia por zika. Porém, o artigo publicado agora é um dos primeiros a associar os escores HINE com o desenvolvimento cognitivo e motor dessas crianças, se mostrando uma importante ferramenta de exame neurológico precoce.

Segundo ele, mesmo com a amostra pequena, o estudo representa uma boa oportunidade para compreender melhor o desenvolvimento da microcefalia depois de alguns anos. “Analisando resultados dos testes e olhando o tempo de atraso que as crianças têm é possível encontrar diferenças de evolução do desenvolvimento neurológico. Um ponto que não fizemos no trabalho, mas que pode ter efeitos, é a análise de quais fatores do contexto social, como educação e família, também podem estar associados ao desenvolvimento”, diz Aguilar Ticona em entrevista à Agência FAPESP.

Outro artigo publicado pelo mesmo grupo em julho deste ano, na revista PLOS Neglected Tropical Diseases, mostrou que escolaridade menor e insegurança alimentar estão entre as determinantes sociais com mais impacto quando analisados casos de zika em mulheres grávidas.

No trabalho, também com o apoio da FAPESP, foram incluídos dados de 469 grávidas, das quais 61% tiveram resultado positivo para o vírus durante a epidemia de 2015-2016 em Salvador. Nesse estudo houve a coleta de informações sobre características demográficas, socioeconômicas e clínicas, avaliando a exposição ao zika por meio de um teste sorológico de neutralização viral. Os resultados ajudam a elucidar os fatores de risco que podem ser direcionados por futuras intervenções para reduzir o impacto da infecção em populações mais vulneráveis.

Amostra

A pesquisa recém-publicada foi feita com crianças atendidas no Ambulatório de Microcefalia do Hospital Geral Roberto Santos (HGRS), em Salvador, que nasceram durante o pico da epidemia de zika, entre outubro de 2015 e janeiro de 2016, e receberam acompanhamento no local.

À época, o Brasil ficou entre os países com o maior número de casos da doença. Em parte, a explicação está ligada à presença do vetor de transmissão do vírus, o mosquito Aedes aegypti, que também transmite a dengue. Os sintomas das duas doenças são semelhantes: febre, dor de cabeça, vermelhidão nos olhos, dores nas articulações e manchas no corpo.

Apesar de a infecção por zika geralmente ser assintomática, pesquisas mostram a ligação entre a doença e o desenvolvimento de síndromes neurológicas, como Guillain-Barré e meningite em adultos, e malformações congênitas, como a microcefalia, em recém-nascidos.

A disseminação de casos da infecção e de síndrome congênita, entretanto, não foi uniforme no país, tendo como epicentro os Estados da região Nordeste. Segundo boletim do Ministério da Saúde, entre 2015 e 2020, 3.423 bebês nasceram com síndrome congênita associada ao zika no Brasil. Dos que seguiam vivos até o ano passado (cerca de 2.900), apenas 56,4% recebiam atendimento especializado.

Já as crianças acompanhadas no estudo tiveram atendimento de equipe multidisciplinar, composta por fisioterapeutas, fonoaudiólogos, enfermeiras e médicos (incluindo oftalmologista e neurologista). Foram coletadas informações sobre as mães e os filhos por meio de entrevistas, prontuários e avaliações clínicas.

Para o HINE, foram avaliados 26 itens, entre eles postura, movimentos, tônus e reflexos dos nervos cranianos. Em crianças com mais de 18 meses de idade, a pontuação HINE ideal para essa seção é igual ou maior a 74. Em crianças com comprometimento do neurodesenvolvimento, uma pontuação menor que 40 está associada a comprometimento motor grave, faixa em que foi detectada grande parte da amostra.

No caso da escala Bayley houve avaliação cognitiva, de linguagem (expressiva e receptiva) e de motricidade (fina e grossa) das crianças. Elas também passaram por provas de função visual como sensibilidade à luz, fixação ocular, estabilidade, rastreamento de objetos, acuidade e contato visual, além da resposta social do sorriso e facial a estímulos visuais.

“A fim de compreender melhor as diferenças entre essas crianças e identificar intervenções precoces que reduzirão o impacto da doença, é necessário primeiro desenvolver novas ferramentas de avaliação ou ajustes padronizados das empregadas atualmente que reflitam esta heterogeneidade e possam ser usados para acompanhar e avaliar a progressão da doença. Os profissionais de saúde precisam de testes fáceis, práticos e confiáveis para prever resultados de longo prazo de seus pacientes”, escrevem os pesquisadores no artigo.

Embora o período de emergência da doença já tenha completado cinco anos, casos de microcefalia provocados pelo zika continuam sendo registrados no Brasil. Considerando apenas 2020, foram notificados 1.007 casos, dos quais 35 haviam sido confirmados e 597 estavam em investigação até fevereiro deste ano, quando o ministério publicou o último boletim.

O artigo Heterogeneous development of children with Congenital Zika Syndrome-associated microcephaly pode ser lido em https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0256444#abstract0.
 

Fonte: https://agencia.fapesp.br/37039