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Desigualdade e pobreza amplificam vulnerabilidade à mudança climática nas Américas do Sul e Central


Desigualdade e pobreza amplificam vulnerabilidade à mudança climática nas Américas do Sul e Central

Avaliação foi feita pelo pesquisador do Inpe Jean Ometto, um dos autores-líderes do novo relatório divulgado pelo IPCC, durante webinário promovido pela FAPESP. O evento contou ainda com outras quatro pesquisadoras brasileiras que participaram da redação do documento (imagem: reprodução)

Publicado em 14/03/2022

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Quase a metade da população mundial – de 42% a 46% dos habitantes humanos do planeta – já se encontra em uma situação de alta vulnerabilidade às mudanças climáticas. E a maior ou menor vulnerabilidade estão associadas a variáveis como gênero, raça e renda. Na América do Sul e na América Central, a vulnerabilidade é amplificada por fatores como desigualdades sociais, pobreza e mudanças no uso da terra, principalmente associadas ao desmatamento. Muitos eventos extremos, como inundações ou secas, elevação do nível do mar e erosão costeira, acidificação de oceanos e lagos, já estão impactando a região e devem se intensificar.

Essas afirmações foram feitas por Jean Ometto, que integra a equipe do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e a coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), durante webinário no dia 3 de março para discutir o sexto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) sobre impactos, adaptação e vulnerabilidade (WGII/AR6), divulgado em 28 de fevereiro.

Criado em 1988 por iniciativa do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (ONU Meio Ambiente) e da Organização Meteorológica Mundial (OMM), o IPCC possui atualmente 195 países inscritos, entre eles o Brasil. Cientistas de todo o mundo participam do órgão voluntariamente, como autores, colaboradores e revisores. E estão organizados em três grupos de trabalho independentes: o Grupo 1, que trata das bases físicas das mudanças climáticas e lançou seu relatório em agosto passado; o Grupo 2, que trata dos impactos, da adaptação e da vulnerabilidade às mudanças climáticas, cujo relatório está sendo lançado agora e foi o tema do webinário; e o Grupo 3, que trata da mitigação das mudanças climáticas e deverá publicar o seu relatório em maio próximo.

Estima-se que as atividades humanas já tenham provocado um aumento de aproximadamente 1 °C na temperatura média do planeta, em comparação com os níveis pré-industriais. “Se a temperatura global exceder em 1,5 °C a temperatura do período pré-industrial, mesmo que por apenas algumas décadas, voltando depois a patamares mais baixos, os danos a diversos sistemas naturais e sociais serão irreversíveis”, disse Ometto, ressaltando que a janela de oportunidades para ações consistentes está se fechando.

O pesquisador do Inpe foi o autor-líder do capítulo 12 (América do Sul e Central) e o coordenador do capítulo especial “Florestas Tropicais” do sexto relatório. Além dele, participaram do webinário quatro outras autoras, que integram o rol de cientistas brasileiros no Grupo 2.

Mariana Vale, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autora do capítulo 12 (América do Sul e Central) e coordenadora do capítulo especial “Hotspots de Biodiversidade”, deu sequência à apresentação.

Um aspecto importante do relatório, enfatizado por ela, é o fato de ele entender o sistema global como uma integração do sistema climático propriamente dito com os sistemas naturais e humanos.

“Os sistemas naturais – terrestres, marinhos, de água doce – tanto são impactados pelo clima como interferem nele e podem atenuar as mudanças climáticas por meio do sequestro de carbono da atmosfera. Ao mesmo tempo, são impactados pelos sistemas humanos, principalmente por meio da degradação ambiental, mas também oferecem aos sistemas humanos uma importante via de adaptação, que chamamos de adaptação baseada em ecossistemas”, falou.

Com base em um levantamento muito mais abrangente de dados, o novo relatório mostra que a extensão e a magnitude dos impactos das mudanças climáticas são maiores do que os estimados em avaliações anteriores. Já há mudanças irreversíveis em ecossistemas terrestres, de água doce, costeiros e marinhos.

Um dado importante destacado por Vale refere-se à mudança na distribuição das espécies naturais, que se deslocaram das áreas mais afetadas pelo aquecimento rumo a regiões mais frias. “Cerca de metade das espécies avaliadas mudou sua distribuição em direção aos polos ou a altitudes mais elevadas. E centenas de espécies já perderam populações locais devido a extremos de calor”, disse.

“Há evidências crescentes de que a degradação ou destruição dos ecossistemas aumenta também a vulnerabilidade das pessoas, especialmente para os povos indígenas e comunidades tradicionais”, acrescentou.

A pesquisadora enfatizou que, “além dos cortes nas emissões de gases de efeito estufa, os riscos serão ainda mais reduzidos se for aumentada a capacidade que os ecossistemas naturais têm de armazenar carbono. “Isso se dá por meio da redução do desmatamento e da restauração de ecossistemas degradados para que voltem a ser sumidouros naturais de carbono”, pontuou.

A apresentação seguinte, conduzida por Patrícia Pinho, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), colocou em foco as dimensões humanas e sociais da crise climática. Pinho foi autora do capítulo 8 (Pobreza, Modos de Vida e Desenvolvimento Sustentável).

“Um aspecto novo apresentado pelo relatório refere-se à justiça climática. Historicamente, a contribuição à crise climática é oriunda principalmente dos países do Norte global. No entanto, os impactos mais expressivos e mais negativos têm sido sentidos em países do Sul global, onde o Brasil está inserido. E incidido sobre populações mais pobres e mais marginalizadas. Entre elas, os povos indígenas e populações tradicionais”, afirmou.

O relatório destaca que os impactos das mudanças climáticas e as desigualdades sociais exacerbam-se uns aos outros. “É impossível pensar em limitar as mudanças climáticas ou propor formas efetivas de adaptação sem tocar no formato do desenvolvimento socioeconômico”, argumentou a pesquisadora.

“Quando pensamos em estratégias de resiliência ou adaptação, temos que considerar os diferentes pontos de partida de cada população. Não há uma solução homogênea que sirva para todos. A mortalidade causada por tempestades, enchentes ou secas é 15 vezes maior em países de alta vulnerabilidade comparativamente aos países de vulnerabilidade menor”, prosseguiu.

Sem fortes medidas de adaptação às mudanças climáticas, a projeção é que o número de pessoas vivendo em condições de extrema pobreza aumente em 122 milhões por volta de 2030.

Essa fala abriu o caminho para a apresentação seguinte, que tratou da adaptação nas cidades. Trata-se de uma questão-chave, uma vez que o processo acelerado de urbanização é uma tendência global, com variações regionais.

O tema foi tratado por Maria Fernanda Lemos, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), autora do capítulo 12 (América do Sul e Central). “No continente africano há um crescimento muito expressivo da população urbana, principalmente em cidades pequenas e médias, enquanto no continente asiático ocorre o crescimento das megacidades. Em poucos anos, as maiores megacidades do mundo estarão na Ásia”, disse.

A pesquisadora lembrou que cidades são sistemas. E que é preciso considerar suas múltiplas variáveis para promover sistemas de adaptação realmente efetivos. “Uma das principais barreiras é o crescimento da pobreza e das desigualdades. Isso associado ao déficit de infraestrutura e serviços básicos, aos assentamentos em áreas de risco, à precariedade das moradias, à informalidade do trabalho. Tudo isso exige atenção e ação urgentes. Há iniciativas muito importantes para reduzir o déficit habitacional na América do Sul e na América Central, mas focadas apenas em redução de riscos e não focadas em transformação, com vistas a construir um ambiente mais adaptado ao futuro”, ponderou Lemos.

E prosseguiu: “Há muitos investimentos em grandes estruturas de engenharia tradicional e poucos para reduzir a precariedade e a informalidade. Entendendo as cidades como sistemas, é preciso planejamentos inclusivos e de longo prazo, sistemas de governança mais eficientes, um quadro regulatório que oriente as ações públicas e as ações privadas no sentido da adaptação e também sistemas de acompanhamento e monitoramento”.

Outro aspecto importante apresentado pelo relatório e destacado pela pesquisadora em sua apresentação é o crescimento das experiências que tentam utilizar as soluções baseadas em ecossistemas também no contexto urbano – principalmente no que diz respeito ao manejo de água. “Há uma expectativa de que iniciativas que combinem obras de engenharia tradicional com soluções baseadas na natureza possam ser soluções mais eficientes para a gestão da água”, afirmou.

Lemos destacou que a mobilidade e os transportes constituem um setor crítico. “Em situações de alagamento, quando o sistema de transportes entra em colapso, as pessoas ficam presas onde estão. Então, adaptar os sistemas de transportes para que possam resistir às situações extremas é de vital importância. E não temos praticamente registros de atuações nesse sentido. É uma lacuna muito grande”, sublinhou.

A construção do futuro, em uma perspectiva realista, mas que também pode ser otimista, foi o fio condutor da última apresentação do webinário, conduzida por Maria Silvia Muylaert Araújo, da Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro (Cehab-RJ), autora do capítulo 18 (Caminhos para o Desenvolvimento Resiliente às Mudanças Climáticas) e do Atlas Regional do Relatório.

“A definição de resiliência, adotada pelo Grupo 2 do IPCC, é a capacidade de sistemas sociais, econômicos e ecológicos interconectados de lidar com um evento perigoso, tendência ou distúrbio, respondendo ou reorganizando de maneira a manter sua função, identidade e estrutura essenciais. A resiliência é um atributo positivo quando mantém a capacidade de adaptação, aprendizagem e/ou transformação”, explicou.

Isso pressupõe a junção das agendas de mitigação e adaptação. “Procurando evidências de resiliência nos grandes e pequenos projetos, trabalhamos com cinco sistemas – energético; urbano e de infraestrutura; terrestres, oceânicos e ecossistêmicos; industrial; e social –, investigando os caminhos possíveis de desenvolvimento econômico mais ou menos sustentáveis”, informou Araújo.

E destacou que a sustentabilidade está associada a uma profunda transformação social, reduzindo drasticamente as emissões de modo a limitar o aquecimento global bem abaixo de 2 ºC e alcançar futuros desejáveis e viáveis para o bem-estar de todos.

“A janela está apertada”, disse a pesquisadora. Mas apontou como um grande avanço do relatório a ênfase nas medidas de adaptação baseadas em ecossistemas e no reconhecimento dos saberes tradicionais como formas efetivas de enfrentamento das mudanças climáticas. “Foi uma grande conquista do relatório a inclusão da ideia de aprender com a natureza e com o conhecimento local das comunidades indígenas, reconhecendo essa ciência, muitas vezes oral, como um sistema que integra práticas culturais, tradições, sabedoria e formas de conhecer o mundo que fornecem informações, observações e soluções precisas e úteis sobre mudanças climáticas.”

Araújo descreveu também alguns dos grandes projetos de desenvolvimento resiliente ao clima atualmente em curso. Um deles é a Belt and Road Initiative (BRI), patrocinada pelo governo chinês, com o investimento de US$ 21 trilhões para financiar obras de infraestrutura (gasodutos, ferrovias, parques industriais, reabilitação urbana etc.) resilientes às mudanças climáticas em mais de 120 países, alcançando 4,4 bilhões de pessoas.

Outro exemplo, que mistura mitigação e adaptação, são as Muralhas Verdes (Green Walls), como a Grande Muralha Verde do Sahel, com 8 mil quilômetros de extensão e 15 quilômetros de largura, destinada a impedir que o processo de desertificação avance do Sahara sobre o Sahel, no continente africano.

“São propostas com vantagens e desvantagens que precisam ser mais bem conhecidas e avaliadas”, resumiu a pesquisadora.

O webinário para divulgação do sexto relatório do IPCC sobre impactos, adaptação e vulnerabilidade foi coordenado pelo físico Paulo Artaxo, integrante do IPCC e membro da coordenação do PFPMCG.

O evento on-line contou ainda com a participação do presidente da FAPESP, Marco Antonio Zago, que destacou como a característica mais importante do IPCC a sua “estrita aderência à ciência”. “Nesse aspecto, as contribuições das centenas de cientistas que o compõem diferem muito das opiniões políticas e ideológicas”, disse.

Zago ressaltou ainda que a FAPESP já destinou recursos da ordem de R$ 100 milhões para estimular pesquisas sobre o tema, articulando as variáveis resultantes da atividade humana com as de causas naturais. No total, já foram contemplados mais de 740 projetos nas mais diversas áreas relacionadas ao tema mudanças climáticas.

O webinário pode ser assistido na íntegra em: www.youtube.com/watch?v=pusHlS0wSEA&t=2s.
 

Fonte: https://agencia.fapesp.br/38135