Em 2016, pesquisadores haviam registrado que os teiús podem ficar mais quentes do que a temperatura da toca onde se abrigam na primavera. Agora, novo estudo encontra a explicação fisiológica do fenômeno (foto: Livia Saccani Hervas)
Publicado em 25/07/2024
André Julião | Agência FAPESP – Um grupo de cientistas apoiado pela FAPESP conseguiu desvendar um mecanismo que permite ao teiú (Salvator merianae) se aquecer com o calor do próprio corpo durante o período reprodutivo, algo nunca antes observado em répteis. Os resultados foram publicados na revista Acta Physiologica, da Sociedade Escandinava de Fisiologia.
“De modo geral, apenas aves e mamíferos são conhecidos pela capacidade de regular sozinhos a própria temperatura [endotérmicos]. Répteis e outros animais, por sua vez, são considerados ectotérmicos, pois dependem da temperatura externa para regular a de seus corpos”, explica Livia Saccani Hervas, primeira autora do trabalho, que começou a ser realizado ainda durante sua iniciação científica na Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Universidade Estadual Paulista (FCAV-Unesp), em Jaboticabal.
Em 2016, o que se sabia sobre a ectotermia dos teiús mudou, quando outro grupo de cientistas apoiado pela FAPESP descobriu que, durante o período reprodutivo, os lagartos mantinham a temperatura corporal mais alta do que a das tocas onde se abrigavam durante a noite, quando não têm o sol para se esquentar (leia mais em: agencia.fapesp.br/22590).
Restava saber como eles faziam isso. O mistério, ou parte dele, começou a ser desvendado pelo grupo do qual Hervas faz parte, liderado pela professora Kênia Cardoso Bícego, da FCAV-Unesp, que coordena o projeto “Capacidades e tolerâncias fisiológicas frente a mudanças climáticas: explorando a dimensão funcional em vertebrados ectotérmicos”, apoiado pela FAPESP.
Ao longo de três anos, a equipe colheu biópsias do músculo esquelético de dez teiús durante o verão (fevereiro) e na primavera (setembro e outubro). Os pequenos pedaços de tecido, retirados de uma pata dianteira e de uma traseira, eram submetidos a análises bioquímicas e também a um calorímetro, aparelho que mede o calor emitido pelas amostras.
“Precisamos de um longo tempo para estabelecer os protocolos, como dosagem de reagentes, uma vez que esse tipo de análise nunca tinha sido realizado nesses lagartos”, conta Bícego.
Os pesquisadores observaram que, durante o período reprodutivo, o músculo de machos e de fêmeas de teiú produzia muito mais mitocôndrias, organela que produz energia nas células.
Além disso, uma proteína presente na mitocôndria chamada ANT, conhecida por um processo bioquímico que gera calor em aves, era mais presente e mais ativa no período reprodutivo. É nessa época que as fêmeas de teiú se preparam para a geração dos ovos e a construção de ninhos, enquanto os machos buscam território e aumentam as gônadas para se reproduzirem.
Outra proteína envolvida no processo de gerar calor, mas em mamíferos, a UCP, não se mostrou ativa durante os experimentos com os teiús. Assim, o músculo coletado no período reprodutivo exibiu uma produção maior de calor do que no verão devido à atividade da ANT, não da UCP.
Sem tremer
Até a descoberta de 2016, os únicos répteis conhecidos por serem capazes de aumentar a temperatura corporal por conta própria eram duas espécies de pítons, grandes serpentes asiáticas que podem alcançar 5 metros de comprimento. O comportamento ocorre sobretudo durante a fase de chocar os ovos.
No entanto, o aquecimento da serpente ocorre quando os animais tremem, um recurso conhecido também em mamíferos e aves. Ao agitar os músculos, geram calor. O teiú, por sua vez, não treme para aumentar a temperatura.
A regulação de calor pode estar relacionada com a produção de hormônios sexuais, que alcançam um pico no período reprodutivo tanto em machos (testosterona) quanto nas fêmeas (estradiol e progesterona). Outros hormônios abundantes nessa fase, como os da glândula tireoide, estão envolvidos no gasto energético e na mobilização das reservas de energia.
“Os hormônios da tireoide são conhecidos por estimularem o aumento da quantidade de mitocôndrias nas células. A elevação desses hormônios durante a fase de reprodução dos teiús pode estar associada à maior abundância de mitocôndrias e, por consequência, à maior atividade da ANT, a proteína que ajuda a produzir calor e que era conhecida em aves”, diz Hervas, atualmente doutoranda na FCAV-Unesp.
Os resultados mostram, junto com estudos já publicados por outros grupos, que mecanismos envolvidos na endotermia podem ter surgido nos vertebrados ainda antes do que se previa. O fato de estarem presentes em um grande lagarto (sem tremer) e em uma grande serpente (com tremor), ainda que em um determinado período do ano, pode ser um sinal de que o fenômeno é mais comum nos répteis do que se pensava.
“São dois animais de grande tamanho corporal, em que o calor produzido internamente demora mais para se dissipar. É possível que outros grandes répteis também tenham períodos em que podem estar mais quentes do que a temperatura externa. Essa é a primeira descrição em um lagarto, e ainda de região subtropical, de um mecanismo celular de geração de calor muito parecido com o que ocorre em aves e mamíferos”, encerra Bícego.
O estudo teve ainda entre os autores Marcos Túlio de Oliveira, professor da FCAV-Unesp também apoiado pela FAPESP, que coordena o laboratório onde os experimentos de bioquímica mitocondrial foram realizados.
Outros participantes foram Ane Guadalupe Silva, bolsista da FAPESP, Lara do Amaral Silva e Marina Rincon Sartori, que tiveram bolsa da Fundação anteriormente.
O artigo Mitochondrial function in skeletal muscle contributes to reproductive endothermy in tegu lizards (Salvator merianae) pode ser lido em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/apha.14162.