Grupo de estudos da Unicamp demonstra que, além de modular a expressão de genes em modelos de células tumorais, o ácido valproico, usado para tratar epilepsia desde os anos 1960, tem ação nos arranjos do próprio DNA e em proteínas histonas que fazem parte da cromatina (luz polarizada de cristais de valproato de sódio / imagem: International Journal of Biological Macromolecules)
Publicado em 12/04/2021
Chloé Pinheiro | Agência FAPESP – Resultados recentes de estudos com o ácido valproico, medicamento usado há décadas para tratar convulsões, indicam que a droga pode interagir com a conformação do DNA, além de regular a expressão gênica.
Os achados são fruto de um projeto coordenado pela bióloga Maria Luiza Silveira Mello, com a colaboração de Benedicto de Campos Vidal, no Departamento de Biologia Estrutural e Funcional do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
O grupo estuda a função do ácido valproico, ou valproato de sódio (VPA), há pelo menos uma década e já demonstrou no passado a atuação do composto na expressão de genes ligados ao diabetes em modelos celulares (leia mais em: https://agencia.fapesp.br/23690/).
A interação com o DNA foi documentada em artigo publicado no International Journal of Biological Macromolecules e é parte de um Projeto Temático apoiado pela FAPESP que estuda os mecanismos de ação do VPA. “Elucidar os mecanismos de ação da droga é importante, pois abre caminho para novas pesquisas farmacológicas”, comenta Mello.
Mudanças nas histonas e no DNA
Mello conta que a ação epigenética do VPA, ou seja, sua capacidade de influenciar na expressão dos genes sem alterar o DNA, já era amplamente conhecida. “Em 2017, pesquisadores iranianos aventaram a possibilidade de um mecanismo de ação que não fosse apenas epigenético, mas sim uma interação direta com a estrutura da histona H1”, conta a cientista referindo-se a uma das proteínas existentes no núcleo celular.
As histonas são proteínas que compõem uma parte importante da cromatina, complexo de moléculas que carrega o DNA no núcleo das células – quando as células estão em fase de divisão, o complexo recebe o nome de cromossomo. “Tivemos então a ideia de estudar como as histonas e o próprio DNA reagiam ao VPA”, diz Mello.
Para isso, o grupo utilizou as moléculas isoladas de DNA, histonas H1 e H3, e VPA, criando misturas à base desses elementos. A interação entre eles foi analisada por meio da microscopia de polarização de alto desempenho e microespectroscopia no infravermelho, com equipamentos anteriormente outorgados pela FAPESP a Campos Vidal.
“Primeiro, no microscópio de polarização, foram analisados cristais de DNA e das histonas isoladas e com o VPA, depois submetemos os preparados à análise por infravermelho”, conta Mello. Esse tipo de medição, feita num espectroscópio associado a um microscópio especial, fornece uma assinatura espectral da estrutura das moléculas – uma espécie de registro gráfico de como elas estão organizadas.
A assinatura é visualizada por meio de um gráfico, com curvas e picos. “Dependendo da frequência na qual se localizam os picos, eles são relacionados com determinados grupamentos químicos”, explica Mello. O grupo então pôde comparar a organização das histonas e do DNA em presença ou ausência do VPA.
“Detectamos que o VPA pode provocar mudanças na conformação, que é o arranjo espacial, de duas dessas histonas, H1 e H3. Além disso, os achados indicaram mudanças na supraestrutura e na ordem molecular do DNA”, segue Mello. O próximo passo do trabalho é confirmar se o efeito ocorre também em células tratadas com o VPA in vitro.
Relação com expressão de genes tumorais
Além dessa descoberta, como parte do trabalho de mestrado de Marina Amorim Rocha, o grupo publicou em dezembro de 2019 no Scientific Reports, do grupo Nature, outro achado importante sobre a ação epigenética do VPA em culturas de células HeLa, que são células tumorais derivadas de tumor humano cervical. O foco da investigação foi um tipo específico de alteração epigenética, a metilação do DNA.
A metilação ocorre quando no carbono 5 da molécula da base nitrogenada citosina do DNA há adição de um grupo metil (CH3). “Quando isso acontece no promotor de um gene, o funcionamento do próprio gene é alterado”, explica Mello. Se houver metilação em larga escala no promotor de um gene supressor de tumor, por exemplo, ele pode se tornar inativo e deixar de fazer seu papel.
Esse processo pode ser manipulado de forma passiva, com a inibição de uma enzima envolvida na metilação, ou por uma via ativa, descoberta mais recentemente. “Nesse caso, um grupo de enzimas da família TET permite que essas citosinas metiladas se transformem em outras moléculas derivadas, até que se complete a demetilação”, detalha Mello.
No trabalho da Unicamp, se observou que, nas células HeLa, o mecanismo que o VPA induz é predominantemente ativo, mas não só. “Ele também atua na via passiva e esse achado pode melhor instrumentar o conhecimento daqueles que se dedicam à fabricação de drogas com potencial terapêutico”, pontua a bióloga. Ou seja, o fato de o composto reduzir a metilação nessa cultura celular em fase estacionária de seu ciclo sugere que, no futuro, ele possa ser testado como um candidato para reverter esse processo em células nas quais o processo de divisão se encontre parado.
O artigo Sodium valproate (VPA) interactions with DNA and histones pode ser lido em www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0141813020337168.
Já o artigo Sodium valproate and 5-aza-2′-deoxycytidine diferentially modulate DNA demethylation in G1 phase-arrested and proliferative HeLa cells está disponível em www.nature.com/articles/s41598-019-54848-x.