Imunofluorescência de inflamassomas ativos em macrófagos infectados pelo SARS-CoV-2. A proteína ASC, que faz parte dos inflamassomas, está corada em verde. Os núcleos dos macrófagos estão corados em azul (crédito: Leticia Almeida e Keyla Sá/USP)
Publicado em 14/09/2022
Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – Experimentos com animais e com células humanas feitos na Universidade de São Paulo (USP) sugerem que a niclosamida, um vermífugo já amplamente utilizado, teria ação antiviral e poderia inibir a resposta inflamatória exacerbada que muitas vezes leva à morte pacientes com a forma grave da COVID-19.
Novos estudos ainda são necessários para descobrir se os efeitos, descritos em artigo na Science Advances, se confirmam em humanos. E, segundo os autores, para isso será necessário desenvolver uma nova formulação da droga, pois a disponível atualmente nas farmácias – de administração oral – não teria efeito nos pulmões.
“O comprimido contendo niclosamida comercialmente disponível não é absorvido no estômago, por isso ele funciona para vermes intestinais. Mas não vai funcionar para COVID-19 se tomado por via oral. Para contornar esse problema, será necessário desenvolver uma nova formulação da droga, que chegue diretamente aos pulmões”, explica Dario Zamboni, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP) e integrante do Centro de Pesquisa em Doenças Inflamatórias (CRID) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP. A investigação também contou com financiamento por meio de outros dois projetos (19/11342-6 e 20/04964-8).
De acordo com Zamboni, os efeitos anti-inflamatórios da niclosamida observados no estudo se devem ao bloqueio de um mecanismo imunológico conhecido como inflamassoma – um complexo proteico presente no interior das células de defesa. Quando essa maquinaria celular é acionada, moléculas pró-inflamatórias conhecidas como citocinas passam a ser produzidas para avisar o sistema imune sobre a necessidade de enviar mais células de defesa ao local da infecção.
Em um trabalho anterior, o grupo da FMRP-USP havia mostrado que, em pacientes com a forma grave da COVID-19, o inflamassoma costuma estar mais ativado que o normal e permanece dessa forma mesmo quando o vírus já foi eliminado do organismo, causando a resposta inflamatória sistêmica e exagerada (tempestade de citocinas) lesiva para o pulmão e demais órgãos (leia mais em: agencia.fapesp.br/39333/).
O pesquisador ressalta, porém, que a niclosamida não deve ser usada como um tratamento profilático, ou seja, para supostamente prevenir a inflamação exacerbada. “Um pouco de inflamação é importante para combater infecções por microrganismos patogênicos. O problema é quando a resposta inflamatória é exagerada, como em alguns casos mais graves da COVID-19. Portanto, não estamos sugerindo o uso profilático da droga, pois pode não contribuir e até mesmo prejudicar a recuperação dos pacientes que não apresentam quadros graves de COVID-19.”
Limpeza celular
Há muitos anos no mercado, a niclosamida tem sido indicada principalmente para tratar infecções por tênia. Recentemente, a droga tem despertado o interesse de pesquisadores por seu efeito antiviral.
No estudo publicado agora na Science Advances, o grupo da USP descreve que a niclosamida promove um processo de limpeza celular conhecido como autofagia. Quando a autofagia é induzida, a célula destrói organelas velhas, recicla componentes celulares e desativa o inflamassoma. Esse processo também inibe a replicação do SARS-CoV-2 dentro da célula.
A pesquisa começou com a triagem de 2.560 compostos, muitos deles já utilizados em humanos, na tentativa de identificar uma substância capaz de modular a ação do inflamassoma. Para isso, foram feitos testes in vitro nos quais células de defesa humanas foram infectadas com a bactéria Legionella, conhecida por ativar esse complexo proteico inflamatório.
Depois de selecionar as três drogas mais promissoras, os pesquisadores realizaram testes em camundongos infectados com SARS-CoV-2 e em glóbulos brancos presentes no sangue de pacientes com COVID-19. Nos experimentos, eles também verificaram a ação dessas drogas nos macrófagos e monócitos, células que atuam na linha de frente do sistema imune e onde, na COVID-19, a ativação do inflamassoma ocorre principalmente. A niclosamida foi a que apresentou o melhor resultado.
Para verificar a ação antiviral, os pesquisadores realizaram experimentos com monócitos infectados in vitro com o SARS-CoV-2.
“A atividade antiviral de niclosamida já era conhecida, por isso a droga já está na fase 1 de ensaios clínicos em pacientes com COVID-19. A nossa descoberta – de que a droga induz autofagia e inibe inflamassoma – pode fornecer informações essenciais para a compreensão do efeito imunomodulador desse fármaco altamente promissor”, avalia.
Efeito em outras doenças
A descoberta de uma droga capaz de inibir o inflamassoma abre perspectivas de novas terapias para uma série de outras condições de base inflamatória. Isso porque, além da COVID-19, o inflamassoma também está envolvido em doenças autoimunes, neurodegenerativas, gripe, alguns tipos de câncer e de doenças infecciosas, incluindo zika, chikungunya e febre do Mayaro.
“Dessa forma, embora o estudo tenha sido feito para COVID-19, a niclosamida também funcionaria, em tese, para inibir o inflamassoma nessas outras doenças. Esses resultados abrem possibilidades para uma série de novas pesquisas”, afirma.
O artigo Identification of immunomodulatory drugs that inhibit multiple inflammasomes and impair SARS-CoV-2 infection pode ser lido em: www.science.org/doi/10.1126/sciadv.abo5400.