Sistema de análise de imagens disponível no Cena-USP torna mais eficaz o controle biológico da mosca sul-americana, que é feito por meio da esterilização de machos; inseto danifica principalmente cultivos de pêssego e maçã na região Sul do país (foto: Análise de pupas/Divulgação)
Publicado em 12/05/2021
Bruno de Pierro | Agência FAPESP – Uma das estratégias usadas no controle biológico da mosca sul-americana (Anastrepha fraterculus) – espécie de mosca-da-fruta que danifica cultivos na região Sul do país, principalmente maçã e pêssego – é a esterilização de machos por irradiação de raios X ou gama. O procedimento tem como objetivo provocar uma diminuição na população desse inseto na natureza.
A esterilização é considerada uma alternativa econômica ao uso de inseticidas e iscas tóxicas. Antes da irradiação, as pupas (um estágio intermediário entre a larva e o inseto) passam por um processo de controle de qualidade, a fim de identificar e descartar aquelas de baixa viabilidade. O problema é que, tradicionalmente, essa análise é feita manualmente, com base na observação dos atributos morfofisiológicos. Mas, a olho nu, é difícil diferenciar pupas vazias ou mortas de pupas saudáveis – distinções como uma mudança de cor são sutis e podem passar despercebidas.
“Isso pode comprometer a eficiência do controle biológico, uma vez que pupas de baixa qualidade não se transformam em moscas estéreis”, explicou a agrônoma Clíssia Barboza da Silva, do Centro de Energia Nuclear na Agricultura da Universidade de São Paulo (Cena-USP) em Piracicaba. “A análise manual tem uma margem de erro em torno de 10%”, afirmou. A ideia de otimizar o processo vem sendo colocada em prática pela pesquisadora ao aplicar um método mais seguro e preciso para analisar as pupas de moscas em larga escala de produção.
Com a ajuda de um aparelho chamado VideoMeterLab (VML), desenvolvido por uma empresa dinamarquesa, Barboza da Silva e sua equipe conseguem analisar imagens multiespectrais (imagens de um mesmo objeto, tomadas com diferentes comprimentos de ondas eletromagnéticas) das pupas, possibilitando identificar com precisão alterações nos padrões de qualidade das amostras.
Adquirido por aproximadamente R$ 400 mil, no âmbito do Programa Equipamentos Multiusuários da FAPESP, o VML é um equipamento de bancada e seu design lembra o de uma cafeteira doméstica de cápsulas. A operacionalidade também é simples, basta colocar as pupas em uma placa de Petri e todo o trabalho é feito em cinco segundos – a análise manual, por sua vez, leva horas.
“Graças à câmera multiespectral do VML é possível ter acesso a várias informações ao mesmo tempo, como dados fisiológicos, sanitários, genéticos e de composição química”, explicou Barboza da Silva. Isso porque o equipamento tem 19 lâmpadas LED, cada uma emitindo comprimentos de ondas diferentes, como o infravermelho e o ultravioleta. A análise, portanto, é feita por meio de reflectância, que é a fração de luz incidente refletida pela superfície do objeto investigado.
As imagens das pupas geradas pelo VML mostram diferentes padrões de cor. Quanto maior o grau de reflectância (ou seja, quanto mais azul se vê na imagem), maior a qualidade da amostra. De acordo com Barboza da Silva, para distinguir uma pupa morta de uma viva, ou uma pupa vazia de uma cheia, os técnicos costumam se ater a características fenotípicas, como cor e peso.
“O problema é que, a olho nu, as pupas vazias têm quase a mesma coloração que as de alta qualidade”, disse a agrônoma, coautora de artigo publicado no Journal of Applied Entomology, no qual são apresentados resultados positivos do uso de imagem multiespectral para controle de qualidade das pupas de Anastrepha fraterculus.
Além de fornecer uma análise completa de vários aspectos físicos e bioquímicos das pupas de mosca, o VML funciona com um sistema de visão computacional, um tipo de inteligência artificial que consegue extrair informações de imagens simulando o funcionamento da visão humana. “Além da análise por imagens, o equipamento gera dados e gráficos que ajudam a monitorar a qualidade das pupas ao longo do tempo”, disse Barboza da Silva, salientando que a tecnologia tem beneficiado, desde o ano passado, o controle de qualidade dos insetos estéreis enviados para produtores de maçã em Vacaria, Rio Grande do Sul.
A cidade gaúcha é sede da Estação Experimental de Fruticultura de Clima Temperado da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que firmou parceria com o Cena-USP no âmbito do projeto Moscasul, iniciativa lançada em 2013 pela empresa junto com a Associação Brasileira de Produtores de Maçã.
“Está sendo estabelecida uma biofábrica em Vacaria, mas, enquanto não é adquirido um irradiador para esterilização das pupas, a produção das moscas estéreis está sendo feita pela USP”, explicou o engenheiro agrônomo Thiago de Araújo Mastrangelo, também pesquisador do Cena-USP. As pupas irradiadas no laboratório do Cena são enviadas de avião, dentro de caixas de isopor refrigeradas a 15 ºC, cerca de três dias antes da emergência das moscas.
Na Embrapa, em Vacaria, as pupas podem ficar em caixas maiores, com acesso a água e alimentos (geralmente açúcar ou barras de mel). Dias depois, já adultos, os machos estéreis são liberados nos campos, onde copulam com as fêmeas selvagens, inviabilizando sua prole. Atualmente, são produzidos de 150 mil a 200 mil insetos por semana na biofábrica-piloto do Cena-USP.
“Sem a esterilização, ou qualquer outro método de controle, o impacto econômico dessa praga pode chegar a 40% da renda da produção", disse Mastrangelo. “Trata-se de uma mosca que se multiplica em áreas de mata e depois invade pomares próximos – os de laranja, em São Paulo, e os de maçã, no Sul.”
De acordo com o pesquisador, não há, por enquanto, indícios de que o controle biológico da mosca Anastrepha fraterculus cause algum tipo de impacto ambiental e ecológico na região. “Estudos recentes feitos no México vêm mostrando não haver prejuízos para a cadeia alimentar na qual a mosca está inserida. Em ambientes tropicais, mesmo que a espécie fosse extinta localmente, outras poderiam tomar seu nicho ecológico”, afirmou Mastrangelo.
O potencial do VML não se restringe apenas ao controle de qualidade de pupas de insetos, ressaltou Barboza da Silva. “Ele vem sendo usado no mundo em várias áreas do conhecimento, como medicina, farmacologia e novos materiais. Por ser um equipamento multiusuário, queremos que outros pesquisadores comecem a utilizá-lo no Brasil”, disse a pesquisadora, que, em 2018, passou por treinamento na Dinamarca para aprender a operar o VML – a unidade que se encontra no Cena-USP é a única disponível hoje no país.
Com ele, Barboza da Silva e sua equipe também realizam estudos com sementes de tomate, cenoura, pinhão-manso e amendoim, a fim de encontrar padrões de imagens ópticas que permitam a caracterização de alterações nos padrões de qualidade das sementes dessas culturas. O estudo tem apoio da FAPESP.
“Em testes convencionais, a avaliação da qualidade de sementes é feita de forma destrutiva, e, assim como no caso das pupas, os resultados são subjetivos, pois dependem do treinamento do analista, além de demandarem estrutura e tempo. Com o uso de inteligência artificial, o VML é capaz de analisar a qualidade de uma amostra de sementes de forma precisa, possibilitando um diagnóstico bastante detalhado de atributos físicos, fisiológicos, genéticos e sanitários, de forma não invasiva, com economia de tempo e dinheiro. Isso representa um avanço e tanto”, afirmou Barboza da Silva.
O artigo Multispectral imaging for quality control of laboratory-reared Anastrepha fraterculus (Diptera: Tephritidae) pupae, de Thiago Mastrangelo, Fabiano França da Silva, Gabriel Moura Mascarin e Clíssia Barboza da Silva, pode ser lido em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/jen.12716.