Evento foi realizado em 21 de fevereiro (foto: divulgação)
Publicado em 26/02/2025
Agência FAPESP – As intervenções realizadas pelo poder público para combater os problemas causados pelo excesso de chuva em Heliópolis, a maior favela da cidade de São Paulo, não abrangeram a totalidade das áreas que sofrem com alagamento na comunidade e também não contemplaram medidas de menor escala que poderiam reduzir o número de áreas afetadas por fortes chuvas. Além disso, não foi desenvolvido projeto de ocupação da beira do córrego Independência e, por consequência, as margens voltaram a ter construção de moradias pequenas e insalubres, sendo que, em algumas áreas, voltou a ocorrer alagamento.
Estes são os principais resultados de uma pesquisa realizada entre 2023 e 2024 por um grupo de cientistas vinculados ao Laboratório de Estudos e Projetos Urbanos e Regionais da Universidade Federal do ABC (Lepur-UFABC) e ao Centro de Estudos da Favela (CEFAVELA), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP. O estudo faz parte de um projeto maior, intitulado “Favelas Urbanizadas em São Paulo: ambiente construído e apropriação no pós-obra” e coordenado por Rosana Denaldi e Luciana Nicolau Ferrara, vice-diretora e pesquisadora associada do CEFAVELA, respectivamente.
As conclusões constam na cartilha Águas na Quebrada e foram apresentadas para a comunidade de Heliópolis pelos pesquisadores do CEFAVELA e do Lepur em oficina realizada este mês na sede da União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas), entidade parceira da pesquisa. Participaram representantes de diversos núcleos de Heliópolis, além de jovens do Observatório De Olho na Quebrada, um projeto da Unas, e o diretor da entidade, Manoel Otaviano da Silva.
“Nosso objetivo ao fazer a pesquisa é trazer dados para discutir a qualidade ambiental e como as obras de drenagem e intervenção em córregos afetam as moradias, as áreas públicas e a vida da comunidade”, conta Ferrara. Segundo os dados do Censo Demográfico de 2022, Heliópolis abriga 20.205 domicílios, nos quais vivem 55.583 habitantes. Desse universo, estima-se que 31.183 habitantes, distribuídos em 13.346 domicílios, estejam registrados no Cadastro Único (CadÚnico).
Os pesquisadores do CEFAVELA e do Lepur fizeram uma complementação analítica sobre os problemas de alagamento em Heliópolis a partir do mapeamento colaborativo realizado pelo Observatório De Olho na Quebrada. A iniciativa dos próprios moradores de fazer esse mapeamento se deu porque perceberam que as fontes oficiais do governo, como o Centro de Gerenciamento de Emergências Climáticas, o Sistema de Alerta a Inundações de São Paulo e GeoSampa, estão incompletas e não contemplam diversas áreas da favela que alagam. Os resultados desse mapeamento foram apresentados em janeiro de 2024.
Os achados
Quando avaliaram tecnicamente o mapeamento colaborativo de pontos de alagamentos realizado pelo Observatório de Olho na Quebrada, os pesquisadores notaram que os núcleos Mina e Lagoa já passaram por intervenções de urbanização, mas uma porção do território não foi contemplada pelos projetos do Programa de Aceleração do Crescimento – Urbanização de Assentamentos Precários (PAC-UAP).
Ter deixado parte da região de fora gerou uma situação de maior precariedade em algumas vielas, onde há alta densidade construtiva e populacional. A situação não é um caso isolado e é ainda mais grave porque essas vielas se localizam em pontos mais baixos e, devido à ausência de um sistema de drenagem adequado, tornam-se áreas de alagamento nos períodos de chuva, já que as águas entram nas vielas e não tem por onde escoar.
Soma-se a esse problema o comprometimento das infraestruturas existentes e a falta de manutenção e limpeza suficientes. “Os moradores relataram que eles mesmos se organizam para remunerar uma pessoa que faz a limpeza das caixas de drenagem autoconstruídas quando estas ficam obstruídas”, contam os pesquisadores no estudo. “Há, portanto, uma situação de desigualdade socioambiental interna. Esse problema é estrutural da organização do espaço em Heliópolis e sua solução dependeria de novas intervenções de urbanização e infraestrutura”, aponta a pesquisa.
Outro ponto crítico detectado no estudo e discutido na oficina se relaciona ao lixo. Heliópolis tem coleta regular e diária, exceto aos domingos. Mesmo assim, a quantidade de resíduos é grande. Os moradores, por sua vez, colocam o lixo nas vias em horários inadequados. Quando chove, o lixo entope o sistema de drenagem superficial. A pesquisa aconselha que se trabalhe melhor a conscientização da comunidade e recomenda a instalação de lixeiras e outras estratégias para disposição dos resíduos.
Análise crítica do PAC-UAP
Outra parte do estudo analisou as intervenções feitas por meio do PAC-UAP no córrego Independência, situado no Núcleo Redondinhos/João Lanhoso de Heliópolis. Para fazer as obras de macrodrenagem, foi preciso remover moradias, em processo intermediado pela Unas e iniciado em 2005. Entre 2008 e 2016, as vielas foram urbanizadas e o córrego foi canalizado, como é habitual em projetos de macrodrenagem, mas não foi previsto nada para as margens desocupadas, que poderiam ter uma área verde e espaços de uso comum.
Assim, na Viela Sabesp, por exemplo, os moradores respeitaram a decisão comum de não usar o espaço agora livre no entorno do córrego para moradia, mas fizeram outros tipos de construções que complementam o espaço das casas. Já na Viela Gaivotas, onde o córrego Independência deságua no ribeirão dos Meninos, houve reocupação, o que gerou emparedamento do canal. Os moradores relatam inundações recorrentes nesse trecho. “Portanto, uma intervenção que visava à qualificação ambiental da área do córrego, retirando moradias de áreas de risco, não se completou e, em alguns trechos, gerou novas situações precárias e de risco”, destaca a pesquisa. O projeto do PAC não considerou a alta demanda por espaço em Heliópolis, densamente habitado, e não propôs maneiras para uso e ocupação do solo que garantissem qualidade de moradia e do espaço comum.
Embasamento científico para a luta da comunidade
A oficina para apresentação da cartilha Águas na Quebrada foi coordenada por Ferrara, com mediação de pesquisadores da equipe. Além de apresentar os dados do estudo, eles trabalharam com os participantes conceitos da área ambiental e da geografia. Também deram orientações gerais sobre como agir em caso de alagamentos e enchentes. Os participantes puderam, ainda, dar início à discussão sobre os problemas e soluções possíveis a partir dos dados e orientações da cartilha.
A oficina foi realizada em duas partes. Na primeira, foram apresentados alguns dos conceitos que envolvem o problema dos alagamentos, como o de bacia hidrográfica e a diferença entre enchente, alagamento e inundação, entre outros. Na segunda parte, foram apresentados resultados de uma outra pesquisa do grupo CEFAVELA-Lepur sobre a qualidade das moradias.
Denaldi entregou para Antonia Cliede Alves, presidenta da Unas, um levantamento completo com todos os dados sobre Heliópolis do Censo 2022 já disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“A realização da oficina faz parte das nossas atividades de extensão, pois é fundamental dar esse retorno para a comunidade. Nosso princípio é sempre trabalhar em parceria, dar voz aos que vivem no território e trazer resultados que ajudem em suas vidas cotidianas”, afirma Denaldi.
Segundo a pesquisadora, o objetivo da divulgação dos resultados é apoiar a comunidade quando for alvo de intervenção no território, tanto pelo poder público como pelo setor privado. “Compartilhando o conhecimento que produzimos, damos subsídios para que possam pensar e discutir as soluções para os seus problemas e desafios embasados em seu conhecimento e experiência de vida, bem como em dados técnico-científicos.”
A cartilha Águas na Quebrada pode ser acessada em: cefavela.ufabc.edu.br/wp-content/uploads/2025/02/cartilha-aguas-na-quebrada.pdf.
* Com informações do CEFAVELA.