Em artigo publicado na revista PLOS ONE, cientistas do Instituto Adolfo Lutz revelam que a quantidade de animais existentes em um determinado perímetro impacta o risco de transmissão da doença. E que áreas onde já ocorreram casos permanecem como locais de maior risco (foto: Patricia Matsumoto)
Publicado em 02/12/2021
Karina Ninni | Agência FAPESP – A leishmaniose é um grupo de doenças infecciosas causadas por protozoários do gênero Leishmania que afeta humanos e animais. Um dos tipos mais graves é a leishmaniose visceral (LV), provocada – entre outras espécies – pela Leishmania infantum. E o principal reservatório desse parasita em hábitats domésticos é o cão de estimação.
Por isso, um grupo interdisciplinar de cientistas brasileiros resolveu avaliar o efeito da população canina e do ambiente domiciliar na manutenção de focos naturais para a transmissão de L. infantum. O estudo foi feito em Bauru, no interior de São Paulo, e os resultados foram recentemente publicados na revista PLOS ONE.
A equipe revelou que a quantidade de cães existentes em um determinado perímetro impacta o risco de transmissão da doença. “Quando há um animal apenas dentro de casa, o risco de transmissão de L. infantum não é tão grande. Mas, conforme aumenta o número de cães, o risco também cresce. Esse é um fator-chave para o artigo: o número de cães; e o mesmo vale para o perímetro. Quando há dez cães em um raio de 100 metros, o risco de transmissão ainda é baixo. Mas, quando aumenta para 40 cães, esse número sobre drasticamente, mais de 700%”, diz Patrícia Sayuri Silvestre Matsumoto, geógrafa, pós-doutoranda no Centro de Parasitologia e Micologia do Instituto Adolfo Lutz e primeira autora do artigo.
Os autores coletaram 6.578 amostras de sangue de cães que vivem em 3.916 domicílios, de novembro de 2019 a março de 2020. “Encontramos, na análise da amostra sanguínea, uma taxa positiva para LV canina em 5,6% dos cães, enquanto para os domicílios, de modo geral, a taxa de positividade foi de 8,7%. Essa é a diferença que emerge quando separamos o que é amostra biológica e o que são características que poderíamos chamar de culturais, ou socioeconômicas. Ou seja: variáveis que podem estar na escala da casa, localmente modificando a taxa de prevalência da doença”, explica a pesquisadora.
Outro dado surpreendente que o artigo traz é que áreas que já tinham casos de leishmaniose visceral no passado permanecem sendo locais de maior risco. “Se lá na frente eu encontro novamente o parasita, a pergunta é: onde ele permaneceu naquele período em que não houve cão infectado nem caso humano, já que ele depende do hospedeiro? O que acontece nesse ambiente? É algo de residual que permanece?”, indaga o biólogo José Eduardo Tolezano, diretor técnico do Centro de Parasitologia e Micologia do Instituto Adolfo Lutz e supervisor do trabalho.
A hipótese considerada pelos cientistas é que o parasita permanece no local porque há ali alguma condição favorável. “Por isso é importante investigar o domicílio. Dentro da casa, os arredores, fazer uma leitura espacial, o que é característico em volta, a presença ou não de matéria orgânica, água, vegetação; tudo isso está na nossa investigação”, conta Tolezano.
Matsumoto ressalta que muitas dessas áreas onde ocorrem casos de leishmaniose visceral são ambientes periurbanos. “De vez em quando passa um gambá por ali, um cachorro do mato, que poderia ter um papel importante na transmissão. Aliado a isso, boa parte dos cães domésticos infectados é assintomática: os animais têm diagnóstico positivo e permanecem sem sintomas clínicos. Podem estar cumprindo um papel de repositório por anos ali no local.”
O estudo, feito em parceria com a Secretaria de Saúde do Município de Bauru, foi apoiado pela FAPESP por meio de dois projetos (19/22246-8 e 18/25889-4).
Transmissão
A leishmaniose é conhecida como doença focal, no sentido de que é preciso haver uma conjunção de fatores em um determinado local para seu aparecimento. No caso da leishmaniose visceral, a transmissão envolve reservatórios silvestres (canídeos e marsupiais) e urbanos (cão), além de vetores – no caso, o mosquito Lutzomyia longipalpis.
Segundo Tolezano, existem mais de 20 espécies de Leishmania e todas são parasitas de animais silvestres. “O ciclo original de circulação do protozoário é o ambiente silvestre. Já encontramos gambás infectados com a leishmania idêntica a essa que causa a forma visceral. Também encontramos no interior de primatas.”
Acontece que, em ambientes menos urbanos, o mosquito pica o animal silvestre infectado e, depois, pode infectar o cão doméstico. Este, por sua vez, passa a ser um reservatório. “Mas é preciso que exista uma conjunção de fatores: o parasita que vai estar na natureza em animais silvestres, o cão doméstico próximo que vai servir como hospedeiro da espécie infantum, além de condições locais adequadas para que o mosquito se desenvolva. Diferentemente do vetor da dengue, as formas imaturas (larvas e pupas) do Lutzomyia longipalpis não se desenvolvem em água parada, mas em solo úmido. Assim, locais em que há matéria orgânica em decomposição são bons ambientes. Também deve haver sombreamento para proteção do inseto adulto no caso de temperaturas extremas e, claro, a presença de uma fonte sanguínea. Esse inseto se contamina ao picar vertebrados infectados, principalmente caninos silvestres e raposas”, explica Tolezano.
De acordo com ele, o sentido de foco é importante porque se refere ao local que tem as condições adequadas para a transmissão. “Se eu disser que em Bauru há leishmaniose visceral, não significa que aconteça na cidade toda. Mas naqueles locais que têm as condições ideais.” Bauru, até pouco tempo, era o principal foco de casos humanos de LV, com população canina estimada entre 90 e 100 mil cães.
Matsumoto afirma que, no geral, o aspecto biológico se sobressai nos trabalhos publicados sobre o tema. “Acontece que tem todo o entorno, um contexto. Nesse sentido, já sabíamos que o cão era uma importante fonte de infecção. Quando nós examinamos um cão infectado, encontramos o parasita na pele sã, no fígado, no baço, em todos os órgãos. Ele tem uma carga de parasitas muito grande. Assim, o mosquito pode se contaminar facilmente.”
Escala
De acordo com Matsumoto, o grande diferencial do artigo é olhar para a escala da casa e, dentro da casa, olhar para os cães. “A literatura trabalha com taxas globais: para o município, para um bairro. Mas não aborda a escala da casa e a importância das diferenças locais. Só que, dentro do ambiente urbano, a gente encontra características diferentes e isso se reflete nas taxas de transmissão diferentes entre os bairros. Por isso, é interessante a gente olhar para essa população canina e para as diferenças entre os bairros.”
A geógrafa explica que o grupo fez duas análises diferentes: uma para a casa, levando em consideração a quantidade de cães positivos e negativos de cada residência; e outra que considerou a quantidade de animais existentes num raio de 100 metros, que é mais ou menos a medida de um quarteirão. “Definimos um ponto, traçamos um raio de 100 metros a partir dele e quantificamos os cães positivos e negativos daquele espaço. E, como se viu, tanto na análise específica da casa quanto na do quarteirão, a quantidade de cães se mostrou importante.”
Tolezano ressalta que, no trabalho, conseguiu-se a minúcia de uma análise do risco do domicílio com um, dois, três ou mais cães. “Além disso, a análise por perímetro é também uma abordagem bastante interessante: se os quintais se comunicam, por exemplo, não adianta dizer que o cão infectado está só na casa de um ou de outro. O cão pode não sair de casa, mas o mosquito infectado pode chegar até ele mesmo assim e fazer esse elo. Se eu tiro o cão infectado, talvez não tenham morrido ainda os mosquitos que se contaminaram em cães infectados. Chegamos a resultados bastante importantes para compreender o quanto e em que velocidade a doença se dissemina em ambiente urbano.”
Segundo Matsumoto, os hábitos dos moradores da casa também são importantes. “Estamos realizando outro estudo sobre isso, como continuidade da pesquisa.”
Para estimar e prever o risco da leishmaniose visceral com base na população canina, os cientistas aplicaram modelos geoespaciais. Usaram estimativa de intensidade de Kernel (que contabiliza, para uma determinada área, a intensidade do fenômeno espacial); análise de cluster para identificar os domicílios com características semelhantes (agrupamentos); geoestatística e modelos aditivos generalizados (GAM) para prever, de acordo com o quantitativo de cães, a resposta modelada de maneira flexível (por meio de uma função).
“Construímos um desenho amostral que nos permitisse enxergar o município de Bauru levando em consideração a relação pessoas-cães, com informações da base de dados do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística]”, resume Tolezano. Isso nos permitiu analisar áreas que tinham características importantes, mas que nunca haviam sido investigadas.
Políticas públicas
De acordo com a Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, em 2019 foram confirmados 2.529 casos novos de LV no Brasil, com uma taxa de incidência de 1,2 caso a cada 100 mil habitantes. Ainda segundo o documento, a taxa de letalidade em 2019 foi de 9%: a mais elevada dos últimos dez anos.
As estratégias para vigilância e controle da doença, traçadas em âmbito federal, consistem na identificação precoce e no tratamento de todos os casos humanos; na identificação da presença dos mosquitos e no controle deles (seja com inseticidas, seja com manejo ambiental); e na identificação e retirada do reservatório canino (em áreas urbanas).
“Nos municípios, quando se realiza o inquérito com técnicas sorológicas para a identificação de cães infectados, o cão que testa positivo deve ser recolhido e sacrificado. É isso que determina a política pública. E isso vai criando uma dificuldade de relação com a comunidade, porque a doença continua a ser transmitida, continuam tirando o cão do domicílio para ser sacrificado e pelo menos metade ou mais desses animais são completamente assintomáticos. Existe uma recusa grande entre os munícipes em autorizar que os cães sejam examinados. E, entre os que realizam o teste e são diagnosticados como positivos, mais da metade dos donos não autoriza o recolhimento, o que, às vezes, gera alguma medida judicial. Mas o que acontece é que grande parte dos animais positivos permanece no ambiente, pelo menos por algum tempo. Eles são assintomáticos, mas o mosquito pode se infectar a partir deles.”
Para Matsumoto, do ponto de vista das políticas públicas, talvez fosse necessário repensar a população canina. “Um exemplo: atualmente, faz-se um inquérito. Coleta-se o sangue do cão para fazer o exame. Mas é um gasto alto em insumo, recursos humanos e tempo. Com esse artigo reforçando a importância da população canina, a gente pode fazer um censo desses animais e já ter uma ideia de em quais áreas devem ser realizados os inquéritos. Se o quantitativo de cães importa, talvez as áreas com médias maiores sejam passíveis da aplicação de outras políticas, diferenciadas, pelos serviços municipais de zoonoses.”
O artigo Impact of the dog population and household environment for the maintenance of natural foci of Leishmania infantum transmission to human and animal hosts in endemic areas for visceral leishmaniasis in Sao Paulo state, Brazil pode ser acessado em: https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0256534.