Pesquisadores da USP relatam que pacientes submetidos a transplante de fígado que contraíram o SARS-CoV-2 tiveram recuperação mais rápida e processo inflamatório menor do que transplantados de coração ou rim. O segredo pode estar na diferente quantidade e no tipo de medicamento imunossupressor utilizado para evitar a rejeição do órgão (foto: Geovana Albuquerque/Agência Saúde-DF)
Publicado em 16/09/2021
Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – Pessoas que passaram por um transplante de fígado e depois contraíram a COVID-19 tiveram recuperação mais rápida e processo inflamatório muito menor do que os transplantados de coração ou rim. Por vezes, esses pacientes evoluíram até melhor do que indivíduos não transplantados. A constatação é de um estudo conduzido no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FM-USP), publicado na revista Transplantology.
Os pesquisadores analisaram a evolução da COVID-19 em 39 receptores de órgãos. Desse total, 25 receberam transplante de rim, sete de coração e sete de fígado. Os dados foram comparados com outros 25 pacientes com COVID-19 não transplantados (grupo controle), pareados por idade e sem comorbidades. Todos os participantes do estudo foram monitorados diariamente quanto a biomarcadores de infecção pelo SARS-CoV-2 para que a evolução da doença fosse acompanhada. Os voluntários foram divididos por órgão recebido, idade e tempo de transplante.
“Uma hipótese para essa evolução desigual da doença entre transplantados pode estar na diferente quantidade de imunossupressores utilizados para que o órgão não seja rejeitado”, diz à Agência FAPESP Ricardo Wesley Alberca, bolsista de pós-doutorado e autor do artigo.
O pesquisador explica que transplantes de coração e rim exigem um uso maior de medicamentos imunossupressores que os transplantes de fígado, por exemplo. “Com isso, além de constatar que nem todo paciente transplantado reage de maneira igual à COVID -19, nosso estudo aponta para a possibilidade de testar determinados imunossupressores no tratamento da COVID-19, não necessariamente em paciente transplantado”, diz o pesquisador.
Alberca ressalta, no entanto, que a provável relação entre a quantidade de imunossupressores e a evolução da COVID-19 entre transplantados se trata apenas de uma hipótese, que ainda precisa ser investigada com maior profundidade.
“Esses pacientes recebem tratamentos de imunossupressão diferentes. Os transplantados de rim e de coração recebem uma imunossupressão muito maior que os transplantados de fígado. Inclusive, está sendo realizado um ensaio clínico, por um grupo de pesquisadores de fora do Brasil, com uma imunossupressão muito conhecida que é utilizada nos pacientes de fígado”, conta.
A hipótese dos pesquisadores da FM-USP é que uma leve imunossupressão durante a infecção pelo SARS-CoV-2 poderia, eventualmente, trazer bons resultados para o paciente. “Isso ainda precisa ser investigado, mas em tese essa imunossupressão poderia ser benéfica para casos de hiperativação do sistema imunológico, como ocorre na chamada tempestade de citocina típica da COVID-19 grave. Nesses casos, o organismo responde de maneira exagerada à infecção e isso acaba eventualmente sendo letal para os pacientes”, diz.
Grupo de risco
Desde o início da pandemia, pacientes com comorbidades, idosos e transplantados foram identificados como grupos de risco para a forma grave da COVID-19. No entanto, pelo fato de os transplantados formarem um grupo muito específico na população em geral, foram realizados poucos estudos com eles e, geralmente, sem investigar o efeito da doença entre transplantados de diferentes órgãos.
O estudo da FM-USP faz parte de um inquérito epidemiológico maior, que analisou mais de 500 pacientes com COVID-19 internados no Hospital das Clínicas no primeiro semestre de 2020. O trabalho é apoiado pela FAPESP e conta também com um auxílio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Os pesquisadores também vão avaliar a infecção pelo SARS-CoV-2 em indivíduos que estão sob tratamento com imunossupressores ou imunomoduladores, como é o caso de pacientes com psoríase, dermatite atópica ou que fazem uso de antirretrovirais (portadores de HIV).
“Estamos avaliando o impacto de diferentes comorbidades na resposta imunológica contra a COVID-19 e esperamos, com o estudo, obter uma maior compreensão da imunopatogênese da COVID-19 em associação a doenças ou condições que necessitam do tratamento com imunossupressores, como no caso de transplantes de órgãos”, diz Maria Notomi Sato, professora da FM-USP.
O estudo, que envolve pesquisadores do Laboratório de Investigações Médicas 56 (LIM-56) da FM-USP e de outras instituições, como Instituto Adolf Lutz, Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP) e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), busca ainda avaliar possíveis tratamentos para a síndrome inflamatória provocada pelo novo coronavírus.
O artigo COVID-19 Severity and Mortality in Solid Organ Transplantation: Differences between Liver, Heart, and Kidney Recipients (doi: 10.3390/transplantology2030030), de Ricardo Wesley Alberca, Gabriela Gama Freire Alberca, Lucas Chaves Netto, Raquel Leão Orfali, Sarah Cristina Gozzi-Silva, Alberto José da Silva Duarte, Valeria Aoki, Maria Notomi Sato e Gil Benard, pode ser lido em www.mdpi.com/2673-3943/2/3/30.