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Estudo mapeia inseguranças e aprendizados de gênero entre adolescentes das periferias


Estudo mapeia inseguranças e aprendizados de gênero entre adolescentes das periferias

Grande parcela dos entrevistados mostrou estar relativamente informada sobre o risco de contrair HIV (91%) ou de uma gravidez indesejada (83%) na primeira relação (foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Publicado em 12/08/2024

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – O sentimento de insegurança no contexto familiar é um componente muito forte da subjetividade de adolescentes bastante jovens das periferias da cidade de São Paulo. Isso é o que se pode deduzir generalizando dados de uma pesquisa realizada em 2021, na zona leste da capital paulista, com quase mil adolescentes de 10 a 14 anos.

Foram entrevistados exatamente 996 adolescentes dessa faixa etária: 523 do sexo feminino e 473 do sexo masculino. Desse conjunto, 62% disseram sentir medo ou ficar mal quando os adultos os xingavam, diziam palavras maldosas ou afirmavam não gostar deles; 36% afirmaram que alguma vez haviam sentido que não tinham ninguém para protegê-los; e 27% informaram que já haviam tido medo de que os pais ou outros adultos pudessem machucá-los seriamente, causando ferimentos ou morte. Violência parental, carência financeira e consumo de álcool ou drogas pelos genitores foram apontados com percentuais expressivos.

A pesquisa, cujos resultados vieram a público agora, foi coordenada no Brasil por professores da Faculdade de Saúde Pública (FSP) e da Escola de Enfermagem (EE) da Universidade de São Paulo (USP). E faz parte de uma investigação global intitulada Global Early Adolescent Study (GEAS).

Liderado pela Johns Hopkins Bloomberg School of Public Health, dos Estados Unidos, com a participação da Organização Mundial de Saúde (OMS), o GEAS mobilizou os esforços de pesquisadores das Américas, Europa, África e Ásia, para saber o que acontece com jovens, na faixa etária de 10 anos a 14 anos, moradores em áreas periféricas dos países envolvidos. Gênero e saúde reprodutiva foram as questões centrais abordadas. No Brasil, a investigação foi encabeçada por Ana Luiza Vilela Borges (EE-USP), Cristiane da Silva Cabral (FSP-USP) e Ivan França Júnior (FSP-USP).

“A faixa etária de 10 a 14 foi escolhida por ser uma fase em que muitas coisas acontecem com esses adolescentes: mudanças aceleradas nos corpos; negociação de espaços de liberdade no interior da família e aprendizados sobre como lidar com instâncias fora do âmbito doméstico; maior engajamento na vida escolar e inserção em novos ambientes. Paradoxalmente, há muito pouco estudo a respeito, a não ser aqueles relativos às transformações corporais. Então, buscamos entender essa profusão de acontecimentos. Globalmente, importava identificar os pontos de convergência e os pontos de disparidade nos aprendizados das normas de gênero nos diferentes países”, conta Cabral à Agência FAPESP.

A pesquisadora enfatiza que os aprendizados das normas de gênero vão influenciar decisões e medidas de proteção ou não na vida futura, quando esses jovens iniciarem a vida sexual, os namoros e outras interações.

“Como se aprendem os traços distintivos nomeados como ‘masculinidade’ e ‘feminilidade’? Eles são iguais ou se diferenciam ao redor do globo? Qual é o impacto desse aprendizado na vida sexual e na saúde reprodutiva futuras? Estas foram diretrizes centrais de nossa pesquisa. Porque, na fase de 10 a 14, há uma forte intensificação desse aprendizado. Além do que se aprende no âmbito da família, há também o que se aprende na escola e o que se aprende com os amigos”, explica Cabral.

Ela argumenta que, por mais que se possa colocar em questão o binarismo de gênero, com sua divisão rígida entre “coisas de menino” e “coisas de menina”, ninguém se locomove no mundo fora das regras de gênero. “De uma maneira ou de outra, essas regras se colocam. O que se contesta hoje, isso sim, tanto nos movimentos sociais quanto na academia, é a reificação do gênero em dois polos. Insistimos na importância do reconhecimento da historicidade e da crítica a essa construção binária e dicotômica”, fala.

Cabral conta que foi um desafio na pesquisa não se deixar aprisionar por essa polaridade, reduzindo gênero a apenas duas condições. “Conseguimos colocar no questionário duas perguntas fundamentais: Com que sexo você nasceu? Como você se identifica hoje? Por meio dessas duas perguntas, verificamos que havia um grande contingente de meninas e meninos cisgêneros, para os quais a identidade de gênero convergia com o sexo de nascimento, e um pequeno contingente que não se identificava com o sexo de nascimento, feminino ou masculino. Tratamos isso com muito cuidado: primeiro, para não enquadrar automaticamente os adolescentes em um polo ou no outro; segundo, para possibilitar a expressão dos incômodos e divergências nas construções identitárias”, informa.

Em um universo de quase mil adolescentes, os pesquisadores encontraram 22 (isto é, 2,2%) que não se identificavam com o sexo designado ao nascimento. “Como é um contingente muito pequeno em comparação com o principal grupo respondente, optamos por fazer uma análise cuidadosa e específica [em andamento] dos resultados ali contidos e então poder contribuir para o debate sobre a não cisgeneridade a partir dessas biografias”, comenta Cabral.

Deve-se levar em conta que a pesquisa teve de ser adiada devido à pandemia de COVID-19 e só pôde ser feita já em fins de 2021, com a queda das curvas de contágio, hospitalização e mortalidade. Assim mesmo, muitas escolas continuavam fechadas. E os entrevistadores tiveram de visitar as casas dos adolescentes cadastrados e arrumar, em cada uma delas, um lugar onde o entrevistado pudesse, com privacidade, responder às perguntas em tablets. Antes foi preciso obter a autorização do Comitê de Ética em Pesquisas e dos pais ou responsáveis. Tudo isso em um momento em que as posições político-ideológicas estavam bastante polarizadas no país e com um debate infundado sobre “ideologia de gênero”.

Com relação à saúde sexual e reprodutiva, o conhecimento demonstrado pelos adolescentes variou bastante conforme a pergunta. Por um lado, mostraram que estavam relativamente informados sobre o risco de contrair HIV (91%) ou de uma gravidez indesejada (83%) na primeira relação. Por outro lado, apenas 44% achavam que meninas ou meninos podiam tomar uma pílula todos os dias para se protegerem do HIV; mas 31% ainda acreditavam que as pessoas podem contrair o vírus da Aids pelo beijo.

O estudo apresenta um conjunto de recomendações para os agentes do sistema público de saúde (mas também da educação). Este, aliás, foi um de seus principais objetivos. Os investigadores destacam ser necessário criar espaços para o cuidado integral de adolescentes nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), com atividades específicas para o grupo etário de 10 a 14; que os profissionais de saúde precisam estar presentes nos espaços escolares e em outros espaços onde os jovens se encontram; e que os educadores precisam do respaldo das equipes de saúde para iniciativas conjuntas de proteção aos adolescentes e promoção de sua saúde integral.

“Ademais, com relação às inseguranças registradas, as equipes da atenção primária à saúde e os profissionais que atuam nas escolas precisam estar atentos para identificar se os adolescentes estão vivenciando ou vivenciaram qualquer tipo de violência. As visitas domiciliares realizadas pelos Agentes Comunitários de Saúde e a colaboração entre Unidades Básicas de Saúde e as escolas podem ser estratégias importantes para identificar experiências de situações de violência”, sublinha Cabral.

O estudo recebeu apoio da FAPESP por meio de dois projetos (17/23177-4 e 23/07962-4).

O relatório da pesquisa pode ser lido na íntegra em: www.geastudy.org/all-reports/relatorio-de-pesquisa-estudo-global-sobre-a-sade-de-adolescentes-muito-jovens.
 

Fonte: https://agencia.fapesp.br/52466