Em testes com roedores, a inovação ajudou a regenerar os músculos da região pélvica que haviam perdido a capacidade contrátil. Pesquisadores buscam parceiros para dar início aos testes clínicos (foto: Juliana Floriano)
Publicado em 26/11/2021
Agência FAPESP* – Pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) desenvolveram uma nova tecnologia feita com borracha natural (látex) e células-tronco que poderá revolucionar o tratamento e a prevenção da incontinência urinária em mulheres que desenvolvem diabetes gestacional, condição que favorece a atrofia dos músculos da região pélvica, dificultando sua contração. De baixo custo, fácil manuseio e produzido com matéria-prima brasileira, o biomaterial é capaz de regenerar a parte afetada sem causar dor ou demandar sessões de fisioterapia. Testes realizados com animais mostraram que o produto é eficaz e não gera efeitos tóxicos.
A tecnologia, que poderá ser introduzida durante o parto cesárea, é uma membrana que funciona como uma rede para guardar as células-tronco. Após ser inserido na paciente e entrar em contato com os músculos da região pélvica, o material passa a liberar aos poucos proteínas bioativas presentes no látex que, em conjunto com as células-tronco, auxiliam na recuperação do tecido e resgatam sua funcionalidade.
“O material oferece condições para que as células ali colocadas se proliferem sem que elas migrem para outros locais do organismo. Como a borracha custa barato, a tecnologia desenvolvida é acessível e tem um alto potencial de ser aplicada”, explica Juliana Floriano, pós-doutoranda da Faculdade de Medicina da Unesp, em Botucatu, e uma das responsáveis pela inovação. O trabalho contou com apoio da FAPESP por meio de três projetos (19/02405-4, 18/25410-0 e 17/21783-4).
Para atender às mulheres que realizam parto normal, a cientista desenvolveu uma “segunda versão” do produto: um dispositivo vaginal que pode ser introduzido pela própria gestante sem causar desconforto. A diferença é que, em vez de possuir células-tronco, o dispositivo de látex apenas libera proteínas que atraem esse tipo de célula regenerativa para o local que precisa ser tratado.
“Mulheres que não forem para a cesárea e tenham incontinência urinária podem usar esse segundo produto, que é um dispositivo que a própria paciente insere. Ela mesma coloca e remove dez dias depois”, destaca Floriano.
As proteínas liberadas pelo material emitem um sinal, como se fosse uma inflamação, atraindo as células-tronco que saem da medula óssea, passam pelos vasos sanguíneos e chegam até os tecidos. Essas células, por sua vez, também emitem sinais que ativam as células-tronco musculares (células-satélite), que se proliferam e constroem novas fibras saudáveis que recuperam a função da musculatura.
“Não precisa de cirurgia e não dói nada. Esse dispositivo vaginal, desenvolvido em parceria com pesquisadores dos Estados Unidos, possui grande biodisponibilidade em todos os músculos e órgãos importantes para a continência urinária: uretra, bexiga e assoalho pélvico. Ou seja, além de regenerar, também poderá atuar na prevenção, já que a mulher também pode desenvolver incontinência urinária após o parto”, diz a pesquisadora.
De acordo com registros médicos, muitas pacientes podem sofrer desse tipo de problema por até dois anos após o parto.
“Muitas puérperas procuram por fisioterapia ou cirurgia, mas nem a operação é garantia de que a questão será resolvida. Cerca de 30% voltam a apresentar o distúrbio, já que o tratamento é muito complexo. Elas ficam constrangidas, muitas deixam o mercado de trabalho, além de elevar muito os custos em saúde pública”, relata Floriano.
As invenções foram testadas em ratas diabéticas gestantes com miopatia muscular com a ajuda de um modelo experimental que reproduziu nas roedoras o mesmo problema encontrado nas mulheres. As fêmeas tiveram os produtos introduzidos e passaram a ser acompanhadas pelos pesquisadores. Em apenas dois meses, a musculatura da região pélvica dos animais já havia sido recuperada, respondendo normalmente a estímulos elétricos induzidos pelos cientistas. Além disso, nenhum tipo de efeito tóxico foi observado nas roedoras.
As duas novas tecnologias, já patenteadas pela Agência Unesp de Inovação (Auin), poderão mudar a vida de milhares de mulheres com diabetes gestacional, caracterizada pelo aumento dos níveis de glicose no sangue durante a gravidez. O problema é capaz de desencadear uma série de complicações à saúde da paciente, como prejuízos aos rins, hipertensão e, principalmente, a incontinência urinária já durante a gestação, causada por uma miopatia no assoalho pélvico e nos músculos retos abdominais. Essa atrofia muscular provoca várias alterações, entre elas, a diminuição de fibras, o que causa a perda da capacidade de contração.
Matéria-prima nacional
A borracha natural, também chamada de látex, é um produto extraído da seringueira, árvore natural da Amazônia. O professor Carlos Frederico de Oliveira Graeff, docente do Departamento de Física da Faculdade de Ciências da Unesp, em Bauru, e orientador dos estudos que resultaram nas tecnologias, esclarece que a principal função do látex na natureza é a regeneração vegetal.
“Quando é feito um corte em um tronco, a função do látex é recuperar aquela árvore. No organismo humano, esse material é estável, compatível e apresenta características próprias que promovem por si só o crescimento de vasos sanguíneos, o que é fundamental para o reparo de tecidos. Nós buscamos o caminho mais natural possível para induzir o corpo humano a fazer aquilo que ele poderia fazer sozinho”, descreve.
A pesquisa foi desenvolvida a partir de seringueiras cultivadas na Fazenda Experimental da Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp, em Botucatu, e contou com especialistas de diferentes áreas, como biólogos, engenheiros florestais, físicos, químicos, entre outros. Para criar a membrana, foi preciso elaborar um novo método de extração da borracha, com uma série de cuidados e tratamentos específicos, sem aditivos químicos. Para que o líquido não coagulasse, como geralmente acontece quando ele é retirado da árvore, o material foi extraído em baixa temperatura e depois passou por uma centrifugação para remover possíveis impurezas coletadas durante o processo. Em seguida, uma camada fina de látex foi depositada em uma placa, formando membranas que secam por sete dias em uma estufa a 50°C. “Fizemos testes de toxicidade e biocompatibilidade. O risco do corpo rejeitar o material é muito pequeno”, ressalta o professor.
Agora, os cientistas buscam empresas parceiras, do Brasil ou do exterior, que possam colaborar com o início de testes clínicos. “São anos de estudos, porém, ainda temos um bom caminho a ser percorrido. É um processo lento, mas vamos vencer as barreiras. Queremos fazer com que esses tratamentos cheguem ao mercado”, conclui Graeff.
* Com informações da Agência Unesp de Inovação.