Estudo feito na Universidade de Oxford sugere que, após sucessivas infecções por coronavírus causadores de resfriado comum ao longo da vida, o sistema de defesa se torna tão especializado que perde a capacidade de reconhecer espécies virais emergentes, como o SARS-CoV-2 (imagem: Wikimedia Commons)
Publicado em 23/04/2021
André Julião | Agência FAPESP – Um grupo internacional liderado por pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, desenvolveu um modelo matemático que pode explicar por que crianças são menos suscetíveis à COVID-19, enquanto os mais velhos respondem pelos casos mais graves.
Ao cruzar dados de faixa etária dos infectados e severidade dos casos na Europa, os pesquisadores concluíram que a exposição a diversas espécies de coronavírus endêmicos na infância – os HCOVs, que na grande maioria das vezes causam apenas resfriados comuns – induziria uma resposta imune também capaz de proteger contra o novo coronavírus. Porém, após sucessivas exposições a esses HCOVs ao longo da vida, esse sistema de defesa se tornaria tão especializado que já não seria capaz de reconhecer e combater vírus emergentes, como o SARS-CoV-2.
O estudo, que teve apoio da FAPESP, foi divulgado na plataforma medRxiv, ainda sem revisão por pares. Além de autores de Oxford, o artigo é assinado por pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, e das universidades de Tel Aviv, em Israel, Federal de Minas Gerais (UFMG) e de São Paulo (USP).
“Hoje é evidente que a maioria das crianças e adolescentes experimenta quadros médios ou assintomáticos de COVID-19, enquanto pessoas mais velhas têm um risco maior de sofrer sintomas severos. Nossa hipótese é a de um mecanismo que pode explicar a severidade nesses dois grupos a partir das diferentes exposições que tiveram aos coronavírus endêmicos, que estima-se serem responsáveis por quase um terço dos resfriados comuns”, conta à Agência FAPESP Francesco Pinotti, pesquisador da Universidade de Oxford e primeiro autor do trabalho.
Sete coronavírus são conhecidos por infectar humanos. O SARS-CoV-2, causador da COVID-19, apareceu no fim do ano passado, enquanto os outros dois que podem causar problemas respiratórios graves – SARS-CoV-1 e o MERS – surgiram após os anos 2000.
O pesquisador explica que a exposição na infância aos quatro coronavírus humanos endêmicos – os HCOVs identificados pelas siglas 229E, NL63, OC43 e HKU1 – pode gerar uma proteção cruzada, ou seja, imunidade não apenas a eles mesmos, como também a coronavírus emergentes como o SARS-CoV-2.
A hipótese do grupo é que, à medida que os mais velhos se expuseram ao longo da vida a esses HCOVs, o sistema imune se tornou mais especializado contra eles. Essa especialização, ou resposta homotípica, os protegeu de infecções desses coronavírus endêmicos, mas teve como desvantagem a perda da proteção cruzada (resposta heterotípica) a novas variedades, como o SARS-CoV-2.
Como a primeira infecção de HCOV ocorre até os cinco anos de idade, essa faixa etária é a que tem os casos mais graves de COVID-19 entre as crianças e adolescentes. Ainda assim, a severidade é muito menor do que entre os adultos e idosos. O modelo mostra que a proteção é maior a partir dos cinco anos e diminui progressivamente a partir daí.
Proteção cruzada
“A ideia do estudo é propor uma explicação possível para esse perfil de severidade da doença de acordo com a idade, além de chamar a atenção para a necessidade de estudar mais a reatividade cruzada entre os coronavírus endêmicos e o SARS-CoV-2. O papel da exposição aos HCOVs, que são muito comuns, inclusive no Brasil, de modo geral vinha sendo subestimado nessa pandemia”, diz Daniel Santa Cruz Damineli, pesquisador da Faculdade de Medicina (FM) da USP e coautor do estudo, realizado com bolsa de pós-doutorado da FAPESP.
Novos trabalhos, porém, têm começado a chamar a atenção para a proteção cruzada. Um estudo publicado na Science por pesquisadores dos Estados Unidos e Austrália, no começo de agosto, mostra a presença de células de defesa (CD4+T) compatíveis com a resposta imune ao SARS-CoV-2 e aos HCOVs em amostras de sangue coletadas antes da pandemia. Estima-se que essas células existam em torno de 20% a 50% da população.
O próprio Damineli faz parte de um grupo de pesquisadores do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina e do Instituto de Matemática e Estatística (IME), ambos da USP, que investiga respostas genômicas de crianças e adultos com quadros assintomáticos e graves de COVID-19.
O estudo, liderado por Carlos Alberto Moreira Filho, professor da FM-USP, é parte de um projeto financiado pela FAPESP. O objetivo é buscar diferenças na expressão de genes em células do sangue desses pacientes que expliquem os quadros diversos da doença.
“Estudos imunológicos serão críticos para esclarecer o papel da imunidade preexistente durante as infecções por COVID-19”, diz Pinotti.
Os pesquisadores não descartam a chamada senescência do sistema imune. O princípio, que até então era usado para explicar a maior suscetibilidade de pessoas mais velhas ao SARS-CoV-2, é baseado no fato de que a imunidade geral cai à medida que as pessoas envelhecem.
O novo modelo, porém, é mais preciso porque considera a variabilidade da resposta imune dentro de cada faixa etária, que tem pessoas que respondem melhor ou pior ao vírus. O modelo de senescência, por outro lado, apenas prevê a piora gradual com a idade e não considera fatores como os diferentes graus de exposição a vírus de cada indivíduo.
Pinotti lembra, contudo, que o estudo é majoritariamente teórico e suas conclusões são hipotéticas. “Em última instância, testar nossa hipótese requer dados sobre exposição aos HCOVs ao longo do tempo, o que é particularmente difícil de se obter”, diz. O trabalho, no entanto, abre caminho para investigar a fundo o papel da proteção cruzada na imunidade ao novo coronavírus e mostra a importância de estudar a ocorrência dos HCOVs.
O artigo Potential impact of individual exposure histories to endemic human coronaviruses on age-dependence in severity of COVID-19 pode ser lido em: www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.07.23.20154369v1.