Constatação foi feita por cientistas da USP com base em experimentos com camundongos e com soro de pacientes (pata de camundongo infectado pelo mayaro, em vermelho, analisada por imuno-histoquímica; imagem: acervo dos pesquisadores)
Publicado em 12/11/2021
Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – Estudo conduzido na Universidade de São Paulo (USP) sugere que indivíduos infectados pelo vírus chikungunya podem desenvolver imunidade parcial ao vírus mayaro. A conclusão, apresentada no Journal of Virology, se baseia em experimentos feitos com camundongos e com o soro sanguíneo de pacientes. Segundo os autores, esse tipo de proteção cruzada pode ser um dos motivos para ainda não ter ocorrido uma grande epidemia de febre do mayaro no Brasil.
No trabalho, apoiado pela FAPESP, os camundongos foram infectados primeiro por chikungunya e um mês depois pelo mayaro – e, em outro grupo de animais, foi feito o procedimento inverso. Nos dois casos, as análises mostraram que a resposta inflamatória à segunda infecção foi mais branda.
“Observamos uma redução significativa da doença secundária. As análises mostraram que a proteção cruzada ameniza o quadro da doença de forma parcial em vários aspectos: reduz a carga viral, o dano tecidual e também os mediadores inflamatórios que causam o dano celular”, conta Marcílio Fumagalli, bolsista de doutorado da FAPESP no Centro de Pesquisa em Virologia da USP, em Ribeirão Preto. “Ao testarmos os anticorpos neutralizantes de um vírus contra o outro, observamos uma resposta protetora baixa contra ambos”, acrescenta.
Apesar de os animais infectados inicialmente por chikungunya apresentarem uma quantidade pequena de anticorpos neutralizantes circulando no sangue, esses níveis sobem rapidamente após a infecção secundária por mayaro, o que induz uma proteção cruzada contra a doença.
O grupo analisou a neutralização por anticorpos, mas também identificou nos roedores outros fatores do sistema imune que podem influenciar essa resposta cruzada. “O indivíduo infectado é sensibilizado, passando a produzir anticorpos e outros mecanismos de defesa. O organismo então desenvolve uma ‘memória imunológica’, o que permite responder mais rapidamente durante a reinfecção”, afirma.
O trabalho quantificou níveis de anticorpos protetores produzidos após cada infecção. “A produção das células de memória [linfócitos B ou T] requer um tempo, mas como o animal já havia sido infectado previamente por chikungunya, ele já as tinha. Isso fez com que, durante a infecção secundária por mayaro, a resposta imunológica, incluindo o aumento nos níveis de anticorpos neutralizantes, ocorresse rapidamente”, explica Fumagalli.
Como ressalta o pesquisador, sabe-se que a resposta imune contra patógenos envolve diferentes frentes de atuação, entre eles mecanismos da imunidade inata [macrófagos, neutrófilos, células NK ou natural killers], imunidade adaptativa [linfócitos B e T] e também mediadores solúveis – como os anticorpos e as citocinas.
“No estudo, observamos o importante papel dos anticorpos, que é um dos fatores que medeiam a proteção cruzada. Mas, além disso, também observamos que outros elementos devem estar envolvidos”, diz Luiz Tadeu Figueiredo, coordenador do Centro de Pesquisa em Virologia e líder do estudo.
Na análise, o grupo conseguiu remover as células B (produtoras de anticorpos) dos camundongos infectados e observar os níveis de proteção cruzada. “Essas análises indicaram que outros fatores da resposta imune também estão envolvidos na proteção cruzada, tais como outras subpopulações de linfócitos ou mecanismos da resposta imune inata. O anticorpo é importante, mas não é o único a atuar na proteção cruzada. Tem algo a mais que ainda não conseguimos identificar”, afirma Figueiredo.
Os pesquisadores também analisaram o soro sanguíneo de pacientes infectados pelo chikungunya. Esse experimento serviu para demonstrar que os anticorpos produzidos após uma infecção por chikungunya também reagem de maneira cruzada, combatendo a ação do vírus mayaro.
Dois vírus, anticorpos diferentes
Mayaro e chikungunya são vírus “aparentados”, pois pertencem à mesma família dos Togavirus. No entanto, embora desencadeiem sintomas parecidos ao infectar humanos, eles apresentam estruturas ligeiramente diferentes. “Cada doença exige a produção de diferentes tipos de anticorpos, sendo que alguns reconhecem as mesmas proteínas. Ou seja, mayaro e chikungunya geram anticorpos diferentes, mas o fato é que alguns deles funcionam para as duas doenças”, explica Fumagalli.
O chikungunya é transmitido por meio da picada de fêmeas dos mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus. A maioria dos casos da doença é caracterizada pela forma aguda da infecção, com febre alta, dores de cabeça, nas articulações e nos músculos, além de náusea, fadiga e erupções na pele, podendo atingir o estado crônico caracterizado por fortes dores nas articulações durante anos.
Já a febre do mayaro é transmitida por mosquitos silvestres do gênero Haemagogus. Os sintomas são bem parecidos com os da fase aguda do chikungunya, incluindo febre, manchas avermelhadas na pele, dor de cabeça e muscular. Os casos mais severos também apresentam dor nas articulações, que pode ou não ser acompanhada de edema. Ainda não foram desenvolvidas vacinas para nenhuma das duas doenças.
A proteção cruzada não é algo inédito na imunologia, mas não costuma ser a regra. O caso do vírus da dengue, por exemplo, que é da família dos Flavivirus, é ainda mais complexo. “Primeiro, que a mesma espécie tem quatro sorotipos diferentes: dengue 1, 2, 3 e 4. Eles apresentam certas diferenças durante a ativação da resposta imune, induzindo anticorpos capazes de gerar a proteção cruzada para um outro sorotipo, entretanto, alguns anticorpos são capazes de agravar a doença”, conta Figueiredo.
Adaptação urbana
A descoberta da proteção cruzada também ajuda a entender por que não ocorre uma ampla circulação do mayaro nas cidades brasileiras, a despeito dos surtos que têm ocorrido nos últimos anos e dos alertas de risco.
“Com o achado, levantamos a hipótese de que essa imunidade cruzada pode ser mais uma barreira evolutiva que impede a ampla adaptação do vírus mayaro ao ambiente urbano. Os dois patógenos são endêmicos no Brasil, entretanto, apenas o chikungunya é adaptado para circulação em cidades, enquanto o mayaro se mantém melhor em regiões silvestres”, diz Figueiredo.
Fumagalli ressalta que, além da proteção cruzada, outros fatores podem contribuir para o bloqueio da transmissão do mayaro. “Além de conseguir infectar os humanos, o vírus também precisa se adaptar bem para ser transmitido aos mosquitos urbanos, o que não ocorre para o mayaro, que é preferencialmente transmitido entre macacos e outros mosquitos silvestres”, afirma.
Outro ponto importante para a diferença de casos entre as duas doenças é a viremia, ou seja, humanos produzem uma reduzida carga viral durante um curto período de tempo após a infecção por mayaro, o que reduz ainda mais a suscetibilidade dos mosquitos urbanos à infecção.
“Em outros animais, como os macacos, a carga viral é significativamente maior, o que também pode explicar essa barreira evolutiva que impede a chegada de mayaro ao meio urbano. Nosso estudo sugere que essa imunidade prévia pode dificultar ainda mais a circulação do vírus mayaro entre humanos, considerando que infectados por chikungunya estão parcialmente protegidos, o que pode ajudar a controlar novos surtos”, diz Fumagalli.
O artigo Chikungunya virus exposure partially cross-protects against Mayaro virus infection in mice pode ser lido em: https://journals.asm.org/doi/10.1128/JVI.01122-21.