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Inflamação na gravidez pode causar lábio leporino em indivíduos com predisposição genética


Inflamação na gravidez pode causar lábio leporino em indivíduos com predisposição genética

Por meio de experimentos com células humanas e com animais, pesquisadores da USP e colaboradores demonstraram como a interação gene-ambiente durante o desenvolvimento craniofacial do embrião pode levar à malformação (foto: James Heilman/Wikimedia Commons)

Publicado em 22/06/2023

Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da University College London, do Reino Unido, demonstraram em modelo animal que a fenda lábio palatina, condição também conhecida como lábio leporino, é decorrente da associação de dois fatores: um genético e outro associado à ocorrência de inflamação durante a gravidez – no período de formação e desenvolvimento do embrião.

Em artigo publicado na revista Nature Communications, o grupo descreve como a relação gene-ambiente pode provocar a malformação craniofacial. O estudo foi conduzido no Centro de Estudos do Genoma Humano e de Células-Tronco (CEGH-CEL), um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP sediado no Instituto de Biociências (IB-USP).

“Nosso grupo acompanha famílias com casos de lábio leporino há anos e havia a suspeita de que, para que ocorresse a malformação, seria necessário um componente ambiental, além do genético. Pois, ao fazer o sequenciamento genético dessas pessoas, vimos que, apesar de muitas delas terem a mutação no gene CDH1, uma parcela importante não apresentava a malformação. Faltava uma peça que explicasse por completo o que levava à ocorrência do lábio leporino”, conta Maria Rita Passos-Bueno, pesquisadora do CEGH-CEL que coordenou a pesquisa.

De acordo com Passos-Bueno, outro elemento que reforça a hipótese é que, entre as pessoas acompanhadas, se observa uma variação grande em relação à gravidade das fissuras. “Pessoas com a mesma mutação genética podem não ter lábio leporino, apresentar apenas uma abertura no lábio ou no céu da boca, ou ainda ter o lábio e o céu da boca afetados”, conta.

A pesquisadora explica que, quando há mutação em um dos alelos do gene CDH1 (que codifica a proteína E-caderina), o resultado pode ser o desenvolvimento de lábio leporino e também de um tipo de câncer gástrico. A mutação interfere no processo de migração de células das cristas neurais – células presentes no desenvolvimento embrionário e que se diferenciam para a formação de ossos, cartilagem e tecido conectivo da face, entre outros tipos celulares.

Com o comprometimento da migração das cristas neurais durante o desenvolvimento embrionário, o processo de diferenciação é prejudicado, podendo resultar no lábio leporino.

No entanto, ressalta Passos-Bueno, essa variante sozinha não explica completamente a questão hereditária do lábio leporino. "Quando os dois alelos de CDH1 são afetados, o embrião morre. Já quando um alelo é normal e o outro mutado, há compatibilidade com a vida e, na maioria dos casos, não ocorre malformação. A esse fenômeno de hereditariedade se dá o nome de penetrância incompleta: existe a mutação genética, mas ela não é traduzida no fenótipo", explica Passos-Bueno.

Na busca pela peça que faltava para montar o quebra-cabeça, os pesquisadores passaram a investigar algum fator ambiental que pudesse contribuir com o processo de malformação.

"Dados da população com lábio leporino mostram que obesidade, diabetes e outras situações pró-inflamatórias, como infecção materna [episódios de febre durante a gestação], são fatores de risco para a criança nascer com fissuras. Mas precisávamos mostrar como essa relação se dava. Os resultados do nosso estudo mostraram que moléculas inflamatórias denominadas citocinas [secretadas por células do sistema imune] induzem uma hipermetilação do gene CDH1 [modificação bioquímica que altera o padrão de expressão do gene]", diz Passos-Bueno.

É o fenômeno que os cientistas chamam de epigenética, ou seja, modificações bioquímicas nas células ocasionadas por estímulos ambientais (no caso a inflamação) que promovem a ativação ou o silenciamento de genes sem provocar mudanças no genoma (mutações).

"O desafio do estudo foi mostrar essa relação entre genética e ambiente, ou seja, o fator que leva à metilação especificamente ou prioritariamente do gene CDH1 em uma gestante portadora da mutação hereditária que apresenta algum estágio de pró-inflamação durante a gestação", conta Lucas Alvizi, que na época da pesquisa era bolsista de pós-doutorado da FAPESP. Atualmente Alvizi é pesquisador na University College London.

Vale destacar que a metilação é uma modificação bioquímica que consiste na adição de um grupo metil à molécula do DNA por meio da ação de enzimas. Trata-se de um processo natural e necessário para o funcionamento do organismo, pelo qual a expressão dos genes é modulada. No entanto, quando esse processo se torna desregulado – como no caso da hipermetilação do CDH1 – pode causar disfunções nas células e contribuir para o desenvolvimento de doenças e malformações.

Além de testes in vitro com células humanas, os pesquisadores fizeram experimentos com camundongos e rãs para provar que a inflamação gerava a hipermetilação no gene CDH1. E comprovaram que a adição de um grupo metil a um trecho específico do DNA dificultava o processo de transcrição do gene, resultando em menor migração das cristas neurais.

"Expusemos as células e os embriões de camundongos e rãs com a mutação em um dos alelos do gene CDH1 a fatores ambientais, no caso, partículas de bactérias que induzem a inflamação. Depois pegamos fêmeas com cópias normais do gene e as expusemos à mesma condição. E observamos que somente a prole das fêmeas portadoras da mutação apresentava defeitos na migração da crista neural, o que pode explicar o aparecimento da fissura", relata Alvizi.

Passos-Bueno explica que mutações no gene CDH1 também podem resultar em um tipo de câncer de estômago hereditário. "Trabalhos recentes mostraram que algumas famílias tinham fissuras e câncer, porém, isso é algo mais raro. Pretendemos, em estudos futuros, investigar a relação entre esses dois fatores [genético e ambiental] com o câncer de estômago”, diz.

Outro objetivo futuro da equipe é entender quais estados pró-inflamatórios durante a gestação, associados à constituição genética do embrião, são suficientes para ocasionar o lábio leporino. Esse conhecimento, na avaliação de Passos-Bueno, poderá orientar ações capazes de prevenir a malformação.

O estudo Neural crest E-cadherin loss drives cleft lip/palate by epigenetic modulation via pro-inflammatory gene-environment interaction pode ser lido em: www.nature.com/articles/s41467-023-38526-1.
 

Fonte: https://agencia.fapesp.br/41718