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Inventor da ideia moderna de criança, Rousseau foi precursor das principais correntes da pedagogia atual


Inventor da ideia moderna de criança, Rousseau foi precursor das principais correntes da pedagogia atual

Livro de pesquisador da Unifesp investigou o Emílio, a grande obra pedagógica do filósofo. E situou-o no contexto das concepções científicas do século 18 (foto: Pixabay)

Publicado em 19/04/2022

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) é muitas vezes considerado o inventor da infância. Contestando a tradição escolástica, segundo a qual a criança não passava de um adulto imperfeito, o filósofo, nascido em Genebra, teria sido o primeiro a reconhecer nela um ser completo, com necessidades próprias, e dotado de uma constituição física e psicológica capaz de interagir adequadamente com o meio. Suas ideias respaldaram toda uma gama de teorias pedagógicas, vinculadas ao chamado “paradigma da escola nova”, que incluem entre seus grandes formuladores nomes como os de Maria Montessori (1870-1952), Alexander Neill (1883-1973) e Jean Piaget (1896-1980).

O livro Educação e Filosofia no Emílio de Rousseau, escrito por Thomaz Kawauche, professor no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), expõe de forma sistemática, mas acessível, o tratado Emílio, ou Da Educação (em francês, Émile, ou De l'éducation), de Rousseau. E sustenta que a revolução realizada pelo filósofo no campo da pedagogia só foi possível graças ao espírito científico do momento histórico em que a obra se situa, 1762. O livro foi publicado pela Editora Unifesp, com apoio da FAPESP.

“A análise interna do Emílio não apenas evidencia o rigor filosófico que Rousseau demonstra em outros escritos, como o Discurso sobre a Origem da Desigualdade [1755] ou o Contrato Social [1762], mas também revela um interesse profundo na aplicação de informações obtidas em textos científicos da modernidade, em especial nos tratados médicos sobre a saúde da criança. Vale notar que a pediatria é um ramo da medicina que encontrou seus primórdios justamente nas obras consultadas e utilizadas por Rousseau”, diz Kawauche.

Essas obras incluíam, entre outras, o Ensaio sobre a Educação Medicinal de Crianças e suas Doenças (1754), de N. Brouzet; o Tratado das Doenças das Crianças (1759), de Hermanni Boerhaave e Gerard Van Swieten; e a Educação Corporal das Crianças Pequenas (1760), de Jean-Charles Desessartz.

Kawauche cita três exemplos muito interessantes de ideias que Rousseau extraiu dessa nova literatura científica e difundiu com maestria, influenciando profundamente o pensamento e o comportamento da época. Eles dizem respeito ao aleitamento, à ortopedia e à masturbação.

“Quanto ao aleitamento, Rousseau foi responsável por uma significativa mudança de costumes. As mulheres da nobreza contratavam amas de leite para alimentar seus bebês e havia todo tipo de justificativa para isso, inclusive o ‘argumento’ de que os vícios da mãe seriam transmitidos à criança por meio do leite. Rousseau contestou esse ponto de vista e ressaltou as consequências sociais benéficas que a relação direta entre mãe e bebê produziria: a diminuição da mortalidade infantil e o aumento da população”, informa o pesquisador.

No Emílio, Rousseau escreveu: “se as mães se dignarem a amamentar seus filhos, os costumes reformar-se-ão por si mesmos; os sentimentos da natureza despertarão em todos os corações; o Estado se repovoará”. Kawauche lembra que, neste tópico, o filósofo tocou em um conceito muito caro aos economistas, ditos fisiocratas, do século 18: da terra como fonte de toda a riqueza e do povoamento como sinal de prosperidade.

A “ortopedia” é um termo que, na língua francesa, surgiu no século 18. E a obra Ortopedia ou A Arte de Prevenir e Corrigir nas Crianças as Deformidades do Corpo (1741), do médico Nicolas Andry du Bois-Regard, foi, por assim dizer, sua certidão de nascimento. Nesse tratado, aparece a imagem de uma árvore cujo tronco é amarrado em volta de uma estaca para crescer verticalmente. Essa ideia, partilhada pela maioria dos médicos do período, estava associada, entre outras coisas, à recomendação de usar cueiros para enfaixar firmemente os bebês.

“Rousseau se opôs a essa maneira de cuidar do corpo das crianças, afirmando que a retidão moral não se produz necessariamente por meio da rigidez disciplinar dos corpos. Na verdade, segundo o filósofo, o efeito dos cueiros seria justamente o inverso: os enfaixados chorariam mais e, limitados fisicamente, precisariam contar com a ajuda dos pais e obedecê-los, ao passo que as crianças que crescessem soltas se tornariam mais rapidamente robustas e independentes. Rousseau foi, inclusive, mais longe. E, no Emílio, recomendou, por exemplo, que a criança crescesse com os membros folgados nas roupas, uma vez que os trajes apertados da realeza induziriam à vida sedentária”, afirma Kawauche.

A masturbação, que continua a ser um tabu nos dias de hoje, foi tratada no Emílio da seguinte forma: em vez de condenar o então chamado “vício escolar”, à maneira de tratados médicos como o Onanismo (1760), de Samuel Tissot, Rousseau propôs retardar o desabrochar da sexualidade, que mais cedo ou mais tarde deveria ocorrer. Para isso, postulou adiar até a idade de 15 anos o desenvolvimento da faculdade racional da criança. Isso porque, para ele, as paixões sexuais adquiriam ímpeto juntamente com a capacidade de raciocínio.

“Essa ideia de Rousseau, que se tornou obsoleta depois de Freud, ia curiosamente na contramão do pensamento dos filósofos iluministas do século 18 e de seus antecessores. Ao contrário de [John] Locke [1632-1704], para quem a criança era uma criatura racional desde o seu nascimento, Rousseau via a razão como algo a ser cultivado, sem pressa e de forma equilibrada, juntamente com as demais faculdades e paixões. Essa recomendação ecoava tratados médicos como A Medicina do Espírito (1753), de Antoine Le Camus, que prescrevia moderação no uso do cérebro em atividades intelectuais. Foi esse livro que lançou as bases ideológicas para o ‘higienismo’ do século seguinte”, comenta Kawauche.

Talvez motivado por uma espécie de ardor patriótico, o médico suíço Édouard Claparède afirmou, em importante artigo de 1912, que Rousseau realizou em pedagogia uma revolução semelhante à de Copérnico em astronomia. Pode haver algum exagero nisso. Mas, se não foi a “revolução copernicana”, sua contribuição configurou, de qualquer forma, uma revolução. “A abordagem da infância proposta por ele pode ser denominada científica, evidentemente à maneira das ciências anteriores ao século 19, porque incorpora esquemas de inteligibilidade emprestados tanto dos modelos da física de Galileu [Galilei] e [Isaac] Newton quanto dos sistemas filosóficos empiristas de [John] Locke e [Étienne Bonnot] Condillac”, pondera Kawauche.

Uma das passagens do Emílio justifica com clareza a compreensão da pedagogia de Rousseau como precursora da escola nova: “A natureza quer que as crianças sejam crianças antes de serem homens. Se quisermos perverter essa ordem, produziremos frutos precoces, que não estarão maduros nem terão sabor, e que não tardarão em se corromper; teremos jovens doutores e crianças velhas. A infância tem maneiras de ver, de pensar, de sentir que lhe são próprias; nada menos sensato do que querer substituí-las pelas nossas. Para mim daria no mesmo exigir que uma criança tivesse cinco pés de altura ou que tivesse juízo aos 10 anos”.

Além do livro em pauta, publicado pela Editora Unifesp, Kawauche deve lançar em breve, pela Editora Unesp, uma nova tradução do Emílio. Com texto de apresentação, notas e índices elaborados pelo pesquisador, a nova tradução diferencia-se das anteriores pelo fato de respeitar rigorosamente o léxico da medicina utilizado por Rousseau. O trabalho contou com a revisão técnica e posfácio de outro especialista em Rousseau, Thiago Vargas, atualmente bolsista de pós-doutorado da FAPESP.

A obra Educação e Filosofia no Emílio de Rousseau tem 336 páginas e pode ser adquirida no site da Editora Unifesp. Está disponível na versão impressa (R$ 64) e em e-book (R$ 44,80).
 

Fonte: https://agencia.fapesp.br/38427