Reserva Natural Serra do Tombador: estudo aborda uso criterioso e metódico de queimadas, e não incêndios descontrolados de origem natural ou criminosa (foto: Alessandra Fidelis/Unesp)
Publicado em 08/08/2025
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Nem sempre o fogo é inimigo da natureza. Em alguns ecossistemas, ele pode ser até essencial para a conservação da biodiversidade. A chave está no contexto: clima, solo, vegetação, história evolutiva e, principalmente, o uso ou abuso que os seres humanos fazem dele. Esta é a mensagem central do livro Fire in the South American Ecosystems (Fogo nos Ecossistemas Sul-Americanos), lançado pela editora Springer, no volume 250 da série Ecological Studies.
Organizado pelas ecólogas Alessandra Fidelis, professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e Vânia Pivello, docente da Universidade de São Paulo (USP), o livro é o primeiro compêndio científico inteiramente dedicado ao tema do fogo nos ecossistemas da América do Sul.
Com 14 capítulos e 56 autores de instituições do Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, Colômbia, Venezuela, França, Alemanha, Portugal e Estados Unidos, a obra aborda a diversidade latitudinal e altitudinal do continente, passando por campos, savanas, florestas, montanhas e áreas úmidas – do Cerrado ao Chaco, dos Llanos à Amazônia.
“Durante muito tempo, o fogo foi visto como sinônimo de desastre e destruição. Mas, para povos indígenas e comunidades tradicionais, ele é ferramenta de manejo, proteção e sobrevivência. Nosso objetivo foi reunir o conhecimento acumulado nas últimas décadas sobre esse tema ainda controverso”, afirma Fidelis.
O livro foi concebido como uma resposta à lacuna histórica da literatura internacional, que até recentemente se concentrava nos incêndios florestais do hemisfério Norte – como os das florestas temperadas dos Estados Unidos e da Europa. “Muitos ecossistemas sul-americanos são dominados por gramíneas C4, altamente inflamáveis, como as do Cerrado. Esses ambientes têm histórias evolutivas marcadas pelo fogo natural”, explica William Bond, professor emérito da Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul, no prefácio da obra. Ele acrescenta que o livro, produto de uma nova geração de pesquisadores, oferece conhecimento fundamental para decisões ambientais mais acertadas.
Entre os destaques da obra está o capítulo sobre os usos tradicionais do fogo por povos indígenas e comunidades locais, escrito por autores do Brasil, da Argentina e Venezuela. Segundo eles, há um rico conhecimento empírico acumulado ao longo de séculos, que tem sido gradualmente incorporado a políticas públicas em países como a Bolívia.
“O desafio é superar o paradigma eurocêntrico que criminaliza o uso do fogo. Em muitos casos, a exclusão completa do fogo tem causado mais danos do que benefícios, promovendo adensamento florestal e perda de espécies adaptadas ao fogo”, informa Pivello. A pesquisadora se refere ao uso criterioso e metódico de queimadas, e não a incêndios descontrolados, de origem natural ou criminosos.
Além disso, a obra traz capítulos específicos sobre o Cerrado, os Pampas, os Campos Sulinos, os Llanos do Orinoco, os campos montanos, o Pantanal, os ecossistemas mediterrâneos do Chile, a floresta amazônica e os ambientes florestais temperados do sul da Argentina e do Chile. Em cada um deles, o fogo é analisado como fator ecológico, histórico, evolutivo e político.
No capítulo intitulado Fire in the Anthropocene, pesquisadores de diferentes instituições brasileiras, incluindo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), discutem como as mudanças climáticas, o desmatamento e a intensificação de eventos extremos têm alterado drasticamente os regimes de fogo. Os autores alertam para o aumento da frequência e da intensidade dos incêndios em áreas antes protegidas por barreiras naturais, como a floresta amazônica.
No capítulo final, as organizadoras e mais três autores, todos bastante experientes em ecologia do fogo e políticas públicas, sintetizam os principais desafios e oportunidades para o manejo do fogo nos próximos anos. E sugerem uma agenda baseada em três eixos: reconhecimento da diversidade ecológica e cultural dos regimes de fogo; integração do conhecimento científico com saberes tradicionais; elaboração de políticas públicas flexíveis, sensíveis às especificidades locais.
O livro reflete a consolidação da pesquisa brasileira sobre o uso criterioso do fogo no manejo de ecossistemas. E também busca ampliar o alcance do conhecimento produzido na América do Sul, historicamente publicado em espanhol ou português, e, por isso, pouco acessível à comunidade internacional. “Queremos que esse conhecimento ajude analistas ambientais, gestores da conservação e formuladores de políticas públicas a tomarem decisões mais sensatas e contextualizadas”, conclui Fidelis.
O livro contou com apoio da FAPESP por meio dos processos 15/06743-0 e 23/16620-0. Mais informações sobre Fire in the South American Ecosystems podem ser acessadas no site da editora: https://link.springer.com/book/10.1007/978-3-031-89372-8.