Análise possibilitou a identificação de 525 genes que codificam proteínas com ação sobre o sistema nervoso, a circulação sanguínea e a parede celular. Em testes preliminares, uma das moléculas mostrou efeito antitumoral (Pachycerianthus magnus; foto: Sérgio Stampar/Unesp)
Publicado em 23/04/2021
André Julião | Agência FAPESP – Pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos concluíram o primeiro mapeamento das toxinas produzidas pelas anêmonas-de-tubo – família de animais marinhos da mesma classe das anêmonas comuns, águas-vivas e corais. As análises revelaram toxinas com potencial de agir no sistema nervoso, na circulação sanguínea e na parede de células, entre outras funções, o que abre caminho para a descoberta de novos medicamentos.
“Por muito tempo, as anêmonas-de-tubo e as anêmonas comuns foram classificadas como pertencentes à mesma família. Desde 2014, no entanto, nosso grupo tem mostrado que, fora a anatomia externa, elas são muito diferentes em comportamento, ciclo de vida e outras características. Então pensamos que as toxinas produzidas por elas também seriam diferentes”, explica Sérgio Stampar, professor da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (FCL-Unesp) em Assis e coordenador do estudo, cujos resultados foram publicados na revista Marine Drugs
O trabalho contou com apoio da FAPESP por meio de três projetos (15/24408-4, 19/03552-0 e 17/50028-0) e foi conduzido em colaboração com cientistas das universidades norte-americanas do Kansas, Carolina do Norte em Charlotte e Florida Southern College.
Os pesquisadores retiraram amostras dos tentáculos dos animais e extraíram o RNA, que em seguida foi sequenciado. Softwares de bioinformática possibilitaram classificar a maior parte de tudo que foi transcrito, agrupando em famílias de toxinas. As análises apontaram a existência de 525 genes relacionados a essas substâncias.
As toxinas fazem parte de famílias encontradas também em águas-vivas, conhecidas por terem venenos que causam desde queimaduras até a morte de humanos. Além disso, uma vez que os tentáculos fazem parte do processo digestivo das anêmonas e das anêmonas-de-tubo, os pesquisadores esperavam encontrar mais compostos semelhantes entre os dois grupos.
No entanto, mais do que substâncias usadas na digestão, as anêmonas-de-tubo produzem neurotoxinas e outras substâncias que afetam a circulação sanguínea e destroem a parede celular, características de toxinas usadas para matar presas e se defender de predadores.
“O mais curioso é que não há relatos de acidentes com esses animais. Eu mesmo já manipulei essas espécies com as mãos desprotegidas algumas vezes e nunca senti sequer uma ardência. Ainda não sabemos por que, mesmo tendo um arsenal tóxico bastante apurado, ele não tem ação contra nós”, diz Stampar.
Diversidade de toxinas
Na espécie Isarachnanthus nocturnus, encontrada no Brasil, foram descobertas toxinas similares às da vespa-do-mar (Chironex fleckeri), espécie de medusa australiana capaz de matar um ser humano com seu veneno, que forma poros na parede das células. Recentemente, o grupo de Stampar realizou o sequenciamento do genoma mitocondrial da I. nocturnus – o maior já encontrado em um animal (leia mais em: agencia.fapesp.br/30478).
Uma das hipóteses para a diversidade de toxinas na espécie está no fato de ela passar muito mais tempo na fase larval – cerca de quatro meses – do que outras anêmonas-de-tubo, que vagam por dois ou três dias na coluna d’água antes de se fixarem no leito marinho. Assim como os corais, anêmonas e anêmonas-de-tubo passam a maior parte da vida fixadas no chão. O tempo estendido interagindo com predadores pode ter feito a I. nocturnus desenvolver defesas mais eficientes do que as outras espécies.
Junto com a Ceriantheomorphe brasiliensis, a espécie é uma das duas encontradas no Brasil que fizeram parte do estudo. Também integram a pesquisa a Pachycerianthus borealis, originária da América do Norte, e a Pachycerianthus maua, encontrada no Mar Vermelho, no Golfo de Aden e na costa da Tanzânia.
As toxinas mais diversas nas quatro espécies foram as hemostáticas e hemorrágicas. Parte de famílias de toxinas produzidas por répteis peçonhentos, uma das encontradas é similar à presente na peçonha do dragão-de-komodo (Varanus komodoensis), que a usa para matar mamíferos maiores do que ele mesmo.
Toxinas com capacidade de alterar a circulação sanguínea têm potencial para gerar medicamentos para problemas cardiovasculares. O captopril, por exemplo, usado para tratar hipertensão, é derivado do veneno da jararaca (Bothrops jararaca).
Foram encontradas ainda toxinas relacionadas à imunidade inata, provavelmente a patógenos, além de inibidores de protease, mesma família usada, por exemplo, em medicamentos antirretrovirais, como contra o vírus HIV.
“É importante lembrar que, como os organismos marinhos estão na Terra há muito mais tempo do que nós, eles têm um arsenal químico muito mais elaborado. Ao longo da evolução, acabaram refinando as defesas contra vírus, bactérias e mesmo contra tumores. Isolar essas substâncias pode ser muito interessante para nós”, explica o pesquisador.
Uma das toxinas identificadas já está sendo testada em células de tumores de mama por Karina Alves de Toledo, também professora da FCL-Unesp. Os resultados, ainda preliminares, têm sido promissores e sugerem que o composto pode matar as células cancerígenas sem prejudicar as saudáveis.
Atualmente, a prospecção de moléculas advindas da biodiversidade marinha é um dos ramos mais promissores da biotecnologia, com estimativas de movimentar em torno de US$ 6,4 bilhões até 2025. O antiviral redemsivir, usado contra os vírus do ebola e recentemente autorizado para tratamento da COVID-19 nos Estados Unidos, por exemplo, é feito a partir de uma substância encontrada em esponjas-do-mar e um tratamento completo pode custar entre US$ 2 mil e US$ 3 mil naquele país.
Descrição de quatro novas espécies
Em outro trabalho recente, publicado na revista Records of the Australian Museum, Stampar e colaboradores da Austrália e da Nova Zelândia descreveram três novas espécies de anêmonas-de-tubo daquela região e uma da Antártica. Esta última, a Pachycerianthus antarcticus, é a espécie mais ao sul de que se tem registro. Antes dela, uma anêmona-de-tubo da Argentina, descrita também pelo grupo de Stampar, era a mais austral conhecida.
A espécie australiana é uma das menores espécies de anêmona-de-tubo já descritas. Com cerca de cinco centímetros de comprimento – enquanto as outras têm normalmente de 30 a 40 centímetros – a Ceriantheopsis microbotanica é endêmica das águas rasas da Botany Bay, pequena baía onde fica o aeroporto de Sidney.
“O material estava guardado há alguns anos no museu, resultado de uma dragagem para a ampliação da pista do aeroporto. Nos primeiros exemplares que analisei, pensei estar lidando com juvenis, mas quando analisei as estruturas sexuais deu para ver que eram indivíduos adultos. Talvez seja alguma adaptação a uma região de águas escuras e pouco convidativas”, conta Stampar, que realizou o trabalho durante o tempo que atuou como pesquisador visitante no Australian Museum, como parte de um projeto financiado pela FAPESP.
Nesse meio tempo, uma pesquisadora da Nova Zelândia entrou em contato pedindo ajuda na descrição de duas espécies daquele país. Curiosamente, um dos animais é bastante comum, a ponto de ser registrado constantemente em fotos por mergulhadores. No entanto, a Pachycerianthus fiordlandensis ainda não havia sido descrita. Por outro lado, a segunda espécie neozelandesa, Ceriantheopsis zealandiaensis, foi descrita a partir de dois únicos espécimes colhidos na região conhecida como Fiordland. As anêmonas-de-tubo atualmente consistem em 57 espécies.
O artigo Transcriptomic Analysis of Four Cerianthid (Cnidaria, Ceriantharia) Venoms pode ser lido em: www.mdpi.com/1660-3397/18/8/413.
A descrição das quatro novas espécies da Oceania e Antártica pode ser lida no artigo Ceriantharia (Cnidaria) from Australia, New Zealand and Antarctica with descriptions of four new species disponível em: https://journals.australian.museum/stampar-2020-rec-aust-mus-723-81100.