Pesquisa comparou padrões de neuroinflamação de 29 indivíduos com síndrome de Down com os de 35 sem a condição – os participantes tinham entre 20 e 50 anos; na imagem, a inflamação é mapeada no cérebro de pessoas com e sem a síndrome (crédito: Daniele de Paula Faria/Laboratório de Medicina Nuclear, HC-FM-USP)
Publicado em 14/10/2025
Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP – A síndrome de Down está associada a um envelhecimento acelerado, e estima-se que até 90% dos indivíduos com a condição desenvolvam a doença de Alzheimer antes dos 70 anos. Um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) identificou padrões elevados de neuroinflamação, já na juventude, em indivíduos com a síndrome – um componente a mais para explicar a alta prevalência de doença de Alzheimer em pessoas idosas com síndrome de Down. A descoberta abre caminho para estratégias de prevenção e acompanhamento da doença.
O trabalho, publicado na revista Alzheimer’s & Dementia e apoiado pela FAPESP, é o primeiro a mapear, por meio de técnicas de medicina nuclear, os padrões de neuroinflamação em pessoas com a síndrome de Down.
Além da neuroinflamação, os pesquisadores também verificaram um marcador importante da doença de Alzheimer: a placa beta-amiloide – formada por fragmentos de peptídeo amiloide que se depositam entre os neurônios causando inflamação e interrompendo a comunicação neural.
“Já se sabia que o processo de envelhecimento nessa população ocorre de maneira mais acelerada, quando comparado com pessoas sem a síndrome, sendo que a doença de Alzheimer já se manifesta em pessoas na faixa dos 40 anos, por exemplo. Também já se sabia que o risco de doença de Alzheimer é aumentado nas pessoas com síndrome de Down por uma questão genética: o gene da proteína precursora amiloide [APP] está localizado no cromossomo 21, que é triplicado na síndrome de Down, fazendo com que esses indivíduos produzam mais beta-amiloide – uma característica da doença de Alzheimer”, explica Daniele de Paula Faria, pesquisadora do Laboratório de Medicina Nuclear (LIM43) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HC-FM-USP).
O que o estudo revela de forma inédita é que a neuroinflamação também se manifesta precocemente, já aos 20 anos, e pode contribuir diretamente para o desenvolvimento da doença de Alzheimer. “No estudo identificamos uma relação muito clara: quanto mais neuroinflamação mais deposição de placa beta amiloide. Isso nos permite pensar nesse processo como um possível alvo terapêutico", afirma Faria.
Como foi feito o estudo
A pesquisa comparou padrões de neuroinflamação de 29 indivíduos com síndrome de Down com 35 sem a condição – os participantes tinham entre 20 e 50 anos. A neuroinflamação foi monitorada por meio de tomografia por emissão de pósitrons (PET), utilizando radiofármacos específicos. A técnica permite visualizar em tempo real tanto a formação das placas beta-amiloide quanto os processos inflamatórios no cérebro vivo.
Os resultados mostraram maior neuroinflamação nas regiões frontal, temporal, occipital e límbica do cérebro de pessoas com síndrome de Down, inclusive entre jovens de 20 a 34 anos. Isso sugere que o processo de neuroinflamação possa começar antes da formação das placas beta-amiloide. A correlação entre carga inflamatória e acúmulo de beta-amiloide foi especialmente evidente em adultos acima dos 50 anos.
Além das análises em humanos, os pesquisadores também acompanharam, ao longo de dois anos, a progressão da neuroinflamação em camundongos modificados geneticamente para desenvolver uma condição semelhante à síndrome de Down. “Com equipamentos específicos para pequenos animais, conseguimos acompanhar toda a evolução da doença. Os dados dos camundongos, somados aos dos humanos, oferecem respostas valiosas sobre o envelhecimento de pessoas com síndrome de Down”, destaca Faria.
Processo bifásico
O processo de neuroinflamação observado nas pessoas com síndrome de Down parece seguir um padrão bifásico. A micróglia – célula de defesa do cérebro – atua de forma protetora, combatendo alterações causadas pela síndrome, mas, com o tempo, essa resposta se torna pró-inflamatória, podendo agravar os danos neuronais. “É como se o cérebro tentasse se proteger, mas acabasse contribuindo para o problema”, explica a pesquisadora.
Embora a doença de Alzheimer ainda não tenha cura nem uma causa única definida, muito menos se saiba se a neuroinflamação vem antes ou depois da deposição de placas, o estudo traz avanços importantes sobre a doença nas pessoas com síndrome de Down.
“O nosso estudo reforça a hipótese de que a neuroinflamação precede as placas beta-amiloide para a população com síndrome de Down. Isso abre caminho para o desenvolvimento de terapias que possam retardar ou bloquear esse processo inflamatório e, com isso, postergar o início da doença de Alzheimer", diz a cientista.
Além de revelar um novo marcador precoce da doença, o estudo apresenta uma ferramenta de imagem capaz de monitorar a neuroinflamação em tempo real. “Mostramos que é possível detectar a inflamação em pacientes vivos, o que permite acompanhar a eficácia dos tratamentos. Essa tecnologia também abre portas para incluir pessoas com síndrome de Down em estudos clínicos sobre doença de Alzheimer. Trata-se de uma população muito importante por ter padrões de desenvolvimento da doença diferentes da população em geral. Só assim poderemos oferecer tratamentos eficazes e personalizados”, conclui Faria.
O artigo Neuroinflammation and amyloid load in different age groups of individuals with Down syndrome: A PET imaging study pode ser lido em: alz-journals.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/alz.70449.