Estudo mostra que perereca endêmica da Serra da Canastra, em Minas Gerais, pode se dispersar menos e encontrar parceiros geneticamente mais próximos quando o terreno é mais acidentado, o que pode ser prejudicial à manutenção da espécie; resultado coloca topografia entre fatores potencialmente importantes para políticas de conservação (Bokermannohyla ibitiguara; foto: Renato C. Nali)
Publicado em 23/04/2021
André Julião | Agência FAPESP – A perereca Bokermannohyla ibitiguara tem cerca de quatro centímetros de comprimento e vive exclusivamente em riachos da Serra da Canastra, em Minas Gerais. O anfíbio, cujo nome significa “moradora da serra”, habita as chamadas matas ciliares, características de margens de rios e riachos. Nesse conjunto de floresta e água os animais podem crescer, se alimentar, encontrar parceiros e pôr seus ovos sem necessariamente irem muito longe durante todo o seu ciclo de vida. É o que mostra um estudo publicado na Diversity and Distributions.
Segundo os autores, a topografia, mais do que condições da vegetação, é o fator preponderante para esses animais se dispersarem mais ou menos no território, a ponto de essa informação ficar registrada em seu DNA.
Ao analisar a variação genética de populações da perereca dentro e fora do Parque Nacional da Serra da Canastra – uma área protegida dentro da região – pesquisadores brasileiros e dos Estados Unidos descobriram que, quanto menos acidentado o terreno, mais diversa é uma população.
Em locais com muita variação de altitude, onde os terrenos são mais acidentados, os indivíduos são muito similares geneticamente, ou seja, mais aparentados. Evolutivamente, isso pode ser prejudicial para a espécie, gerando uma maior suscetibilidade a doenças ou a mudanças climáticas, por exemplo.
“Estudos de avaliação genética e de conservação costumam levar em conta, entre outros fatores, a cobertura vegetal. Mas o Cerrado tem chapadões, áreas de platô, áreas mais acidentadas. Queríamos saber se essa topografia variada poderia ter algum papel na diversidade genética dessa espécie. Descobrimos que sim. A vegetação, sozinha, não explicou as diferenças genéticas encontradas entre os locais em que essa espécie ocorre e nem mesmo dentro do mesmo local. As condições do relevo, sim”, explica Renato Christensen Nali, primeiro autor do estudo e professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Juiz de Fora (ICB-UFJF).
O trabalho é um dos resultados do doutorado de Nali, realizado no Instituto de Biociências da Universidade Estadual Paulista (IB-Unesp), em Rio Claro, com bolsa da FAPESP.
A pesquisa integra o projeto “Ecologia reprodutiva de anfíbios anuros: uma abordagem evolutiva”, coordenado por Cynthia Peralta de Almeida Prado, coautora do trabalho e professora da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, em Jaboticabal, e do Programa de Pós-Graduação em Zoologia do IB-Unesp, em Rio Claro.
Diferentes no plano
“O resultado foi muito interessante, entre outros motivos, porque traz um elemento novo para a conservação no Cerrado. Quando se fala em unidades de conservação, pensa-se muito, e com razão, em corredores ecológicos e matas, mas não necessariamente se há uma topografia que possa permitir a dispersão dos animais”, diz Nali, que coordena o Laboratório de Ecologia Evolutiva de Anfíbios (Lecean) na UFJF.
Para chegar aos resultados, os pesquisadores analisaram 12 populações de B. ibitiguara, seis dentro do Parque Nacional da Serra da Canastra e outras seis fora. Nas populações da área protegida, havia uma diversidade genética muito maior do que nas que vivem fora do parque. Ao cruzar informações sobre o grau de proteção das áreas e a condição da vegetação, esses fatores não foram tão decisivos para essa diversidade quanto o relevo.
“O terreno é muito mais acidentado fora do parque, enquanto dentro dele há um grande platô, muito uniforme. Nele, os anfíbios conseguem se dispersar mais, encontrar parceiros em áreas mais distantes e aumentar sua diversidade genética. Fora, o terreno acidentado e as diferentes altitudes aparentemente acabam restringindo as populações a áreas menores”, afirma o pesquisador.
A influência desses fatores ficou evidente nos testes genéticos. Usando a técnica de marcadores por microssatélite, que localiza regiões específicas do genoma, os pesquisadores encontraram uma maior diversidade de alelos nas populações dentro do parque. Esse é um dos parâmetros que determinam a integridade genética e, consequentemente, um maior potencial adaptativo.
Além disso, as populações fora do parque apresentaram maior perda de heterozigose, fenômeno relacionado com a perda de variabilidade genética. Repetida ao longo das gerações, essa perda também ameaça a população.
Além de chamar a atenção para a importância de se levar em conta a topografia em estudos de conservação, o trabalho mostra como a simples presença da espécie num local não garante que ela não esteja ameaçada.
“Realizando análises moleculares, podemos verificar se as populações estão numa condição genética favorável. Uma área pode ter um número grande de indivíduos, mas, analisando o DNA, podemos descobrir que a sua constituição genética é desfavorável, com poucos alelos e baixa heterozigose. Então, na prática, o tamanho efetivo da população é pequeno”, aponta.
O pesquisador ressalta que a pesquisa foi realizada com apenas uma espécie de anfíbio anuro, mas acredita que o resultado possa valer para outras, uma vez que as características físicas para deslocamento são semelhantes para outros sapos, rãs e pererecas. No entanto, novas pesquisas são necessárias com outras espécies para confirmar a aplicabilidade dos resultados.
Além disso, o grupo reafirma que a cobertura vegetal continua sendo um importante fator para a conservação, inclusive do Cerrado, que já teve mais de 50% de sua área convertida em pastagens ou plantações e tem menos de 5% protegidos por unidades de conservação.
O artigo Topography, more than land cover, explains genetic diversity in a Neotropical savanna tree frog pode ser lido em https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/ddi.13154.