Uýra Sodoma, bióloga, artista visual e mestre em ecologia, falou no seminário sobre as "Amazônias", narradas por um olhar ao mesmo tempo tradicional e científico (foto: Heitor Shimizu/Agência FAPESP)
Publicado em 13/06/2025
Heitor Shimizu, de Paris | Agência FAPESP – O Seminário de Museologia França-Brasil, realizado nos dias 12 e 13 de junho, em Paris, reuniu pesquisadores, dirigentes de instituições e representantes de comunidades indígenas para discutir a importância dos museus de história natural e o seu papel no século 21.
O evento foi organizado pelo Museu Nacional de História Natural (MNHN), em parceria com a FAPESP e a Universidade de São Paulo (USP), e integrou a programação da FAPESP Week França.
“Os museus de história natural remontam ao século 17, na Europa, quando plantas, animais e artefatos de outros continentes foram coletados ao redor do mundo e enviados a centros europeus para abastecer os chamados ‘gabinetes de curiosidades’, muito apreciados pela nobreza. Alguns desses gabinetes se tornaram a base do que viriam a ser grandes coleções, como as do Museu Nacional de História Natural, em Paris, e do Museu Britânico, em Londres. Esse período, que vai do século 17 ao século 20, foi particularmente marcado pela dominação europeia no mundo, posteriormente seguida pela expansão neocolonialista de outras potências”, disse Eduardo Neves, diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP).
Eduardo Neves (MAE-USP): museus podem contribuir para a inserção do conhecimento científico em um espectro ampliado de saberes (foto: Heitor Shimizu/Agência FAPESP)
“Os museus, ao reunirem coleções arqueológicas, antropológicas, geológicas, zoológicas e botânicas, podem promover uma compreensão mais holística do mundo ‘natural’ e do lugar da humanidade. Tal integração estimula a colaboração entre disciplinas, permitindo que pesquisadores lidem com questões complexas que exigem saberes de diferentes áreas – como entender a perda de biodiversidade, rastrear as interações entre seres humanos e meio ambiente ou estudar as transformações geológicas e ecológicas da Terra. Além disso, essa abordagem possibilita a incorporação de outras perspectivas, para além daquelas oriundas exclusivamente da pesquisa científica”, disse Neves.
Segundo ele, essa perspectiva multidisciplinar e multicultural não apenas se alinha às realidades interconectadas do século 21, como também reposiciona os museus de história natural como espaços essenciais de pesquisa, educação e diálogo com o público.
“Os museus podem, por meio da própria transformação, contribuir para a emergência de novos discursos e narrativas que insiram o conhecimento científico não apenas em perspectivas culturais e históricas, mas também em um espectro ampliado de saberes, fundado em outras categorias e experiências, além daquelas definidas pelo sistema das ciências”, disse Neves.
Diálogos horizontais
Uýra Sodoma, bióloga, artista visual e educadora em artes, falou no seminário sobre “as Amazônias, narradas por um olhar ao mesmo tempo tradicional e científico, com o objetivo de reocupar um lugar mais digno, mais verdadeiro e mais atual aos olhos de mundos que ainda nos percebem como há cinco séculos”.
Mestre em ecologia, Uýra explicou que seu trabalho aborda a biodiversidade a partir de “uma perspectiva desse lugar chamado Amazônia, misturando ciência com arte. Nosso trabalho, enquanto artistas indígenas de arte contemporânea, é criar debates que sejam relevantes ao tempo atual – um tempo que nunca existiu antes. Estamos teimando por diálogos enquanto indígenas, usando a arte como caminho, teimando em diálogos importantes, tendo a arte como uma boa armadilha para capturar curiosos, como dizia Jaider Esbell, artista indígena Makuxi, referência na arte contemporânea".
“Indígenas de mundos nunca escutados, sempre violentados, utilizam a arte, a beleza, a magia e todos os saberes para capturar a curiosidade das pessoas, que se aproximam dessa arte dizendo: ‘Que bacana, que bonito’. Mas falta diálogo, falta conversa, que é o que precisamos ter a partir dos mundos indígenas e dos mundos do Ocidente”, disse Uýra, exibindo em sua apresentação uma foto publicada em um livro com a legenda “Theodor Koch-Grünberg anotando contos de um indígena em sua viagem de 1911-1913”. O etnólogo alemão é identificado, mas não a outra pessoa com quem ele conversa – é apenas “um indígena”.
“Quando olhamos imagens como essas – com o nome de uma pessoa e a outra sem nome – entendemos que aquilo deveria ser descrito como um diálogo, porque existem duas pessoas, uma de frente para a outra. Mas sabemos que tudo o que não aconteceu durante séculos foram diálogos reais, horizontais, com respeito, sem interesse na extração, na exploração de conhecimentos, saberes, peças, minerais, flora, fauna – ou até cabeças, como no Weltmuseum, em Viena, que exibe uma cabeça humana, de uma pessoa do povo Munduruku”, disse.
“Hoje, temos oportunidade de criar um diálogo no qual ninguém esteja acima de ninguém, em que um lado não roube tudo o que o outro tem. Um diálogo no qual entendamos que a diferença não precisa mais ser motivo de violência. É na diferença que temos que construir os diálogos deste tempo. É no respeito real, na escuta, na coautoria”, disse Uýra.
Depósitos de conhecimento
“Os museus em geral, mas aqui no nosso caso os museus de história natural, são portos seguros onde a informação científica é transmitida à sociedade. Isso se torna ainda mais importante neste momento da nossa história, em que a narrativa – ou seja, quem conta e como conta – muitas vezes ganha mais relevância do que os próprios fatos científicos ou do que a própria ciência”, disse Luís Fábio Silveira, vice-diretor do Museu de Zoologia da USP.
Segundo ele, os museus ocupam uma posição privilegiada como espaços de confiança pública, onde as pessoas buscam informações de qualidade – algo essencial em tempos de negacionismo científico e de disputas em torno do papel da ciência e dos cientistas.
“Hoje, estamos em uma competição desigual com as telas dos celulares. As pessoas querem informações rápidas e fáceis, muitas vezes sem a profundidade necessária, em que o narrador importa mais do que o conteúdo transmitido”, disse Silveira, ao exibir uma imagem simbólica: um grupo de adolescentes entretidos em seus celulares, de costas para “A Ronda Noturna", de Rembrandt, no Rijksmuseum, na Holanda.
Luís Fábio Silveira, do Museu de Zoologia da USP, alertou para o declínio da coleta de espécimes para coleções científicas (foto: Heitor Shimizu/Agência FAPESP)
Silveira também alertou para um fenômeno preocupante: o declínio da coleta de espécimes para as coleções científicas, especialmente nos países do hemisfério Norte.
“A ciência depende fundamentalmente das coleções de museus. Bioengenharia, medicina, ecologia e muitas outras áreas se beneficiam dos espécimes preservados. No entanto, observamos uma queda acentuada na coleta, particularmente na América do Norte e na Europa. Um exemplo claro são os beija-flores: até a década de 1940, milhares de exemplares eram coletados regularmente. A partir dos anos 1980 – e mais ainda depois dos anos 2000 – praticamente nenhum novo espécime tem sido incorporado às principais coleções do mundo”, disse.
Esse esvaziamento das coleções vem acompanhado de mudanças institucionais. “Há uma redução significativa no número de curadores. Em vez de cientistas ou especialistas dedicados à manutenção e expansão das coleções, muitos museus têm contado apenas com técnicos. Isso compromete a capacidade dessas instituições de acompanhar e interpretar as mudanças na biodiversidade, justamente num período de crise ecológica global”, disse.
Silveira defende que os museus de história natural são mais do que espaços expositivos: “Eles são guardiões do tempo. Reúnem a biodiversidade do planeta – botânica, microbiológica, fúngica, zoológica – e preservam espécimes que, de outra forma, desapareceriam da face da Terra. São essas coleções que nos permitem estabelecer linhas de base para entender as transformações atuais e futuras. São arquivos vivos, essenciais para projetar o que está por vir”.
“Artefatos e espécimes guardados nos museus de história natural desafiaram o tempo. Eles só chegaram até nós porque foram preservados nessas instituições. É esse o papel insubstituível dos museus: resistir ao tempo e permitir que, a partir deles, possamos compreender e enfrentar as mudanças que marcam o nosso presente e vão moldar o futuro”, disse.
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