No caso do açúcar não há alteração de qualidade no xarope, mas a cana perde quase 10% da massa (foto: Leonardo Madaleno/Fatec-Jaboticabal)
Publicado em 14/08/2025
Karina Ninni | Agência FAPESP – O Brasil é o maior produtor mundial de cana-de-açúcar, basicamente utilizada para a fabricação de açúcar e etanol. A colheita da cana – antes feita manualmente, sendo a planta retirada inteira e processada em até 24 horas – hoje emprega máquinas e equipamentos que picam a gramínea e aumentam a eficiência do transporte para as usinas, o que obriga um processamento mais rápido, idealmente em até oito horas.
“Estocar a cana picada acarreta problemas de perda por transpiração do material e de ampliação dos pontos de entrada de microrganismos. Assim, o processamento tem de ser mais rápido, quase imediato. Entretanto, muitas vezes, as usinas não conseguem processar tudo de maneira imediata e são obrigadas a estocar por mais tempo. Muitas estocam a céu aberto, em carretas, numa prática conhecida como ‘estoque sobre rodas’. O caminhão chega do campo, desatrela a carreta cheia e leva de volta para o campo uma carreta vazia. A cana vai ficar ali esperando o processamento”, explica o agrônomo Leonardo Lucas Madaleno, professor do curso de Biocombustíveis da Fatec Nilo De Stéfani, em Jaboticabal. Ele é o primeiro autor de um artigo publicado no International Journal of Agronomy sobre o tema, que ainda hoje segue pouco estudado.
“Em 2015, quando fizemos o experimento de campo, havia trabalhos com a cana inteira. Não encontramos trabalhos falando de como se comporta a cana picada armazenada mais de 24 horas e, ainda hoje, em 2025, não encontramos. Há pouca coisa sobre o tema porque a pesquisa demanda muito tempo e estudo prático com a usina e os produtores”, explica o pesquisador.
Segundo ele, não é comum as usinas estocarem a cana por mais de 24 horas, mas pode acontecer, inclusive porque as usinas se preparam para a estação chuvosa colhendo tudo o que podem antes das chuvas, o que gera um grande volume para processar em poucas horas.
O trabalho foi apoiado pela FAPESP por meio de Auxílio à Pesquisa no Programa BIOEN. “O apoio da FAPESP foi fundamental, pois o trabalho de campo não é simples; exigiu recursos para compra de equipamentos, reagentes, viagens para buscar o material e voltar, além de uma logística bem azeitada.” O experimento foi feito na Usina Santa Fé, em Nova Europa (SP), e conduzido em duas safras: 2015/2016 e 2016/2017.
Simulação
Com a ajuda de funcionários da usina, os pesquisadores simularam o “estoque sobre rodas” em caixas plásticas perfuradas de 30 cm de altura por 51 cm de comprimento e 33 cm de largura. Durante o armazenamento, a perda de peso da cana-de-açúcar foi monitorada a partir do segundo período da safra 2015/2016.
“No primeiro ano, uma amostra foi processada a cada seis horas [6, 12, 18 e 24]. Na safra seguinte, os intervalos para processamento foram de 12 horas [0, 12, 24, 36 e 48]. Determinamos o peso comparando os demais tempos de armazenamento com o tempo zero, que é o momento da chegada da cana ao estoque, logo após a colheita. Em seguida, processamos colmos para extração do caldo, análise de qualidade e separação para produção de xarope, que é o produto intermediário do açúcar, e do vinho, que é o intermediário do etanol”, resume Madaleno.
As caixas ficaram na usina nas mesmas condições em que ficam as carretas. “Começávamos com o armazenamento às 8 horas da manhã. Após seis horas, já pesávamos outra caixa, analisávamos e congelávamos o material para levar para a Fatec. Depois de 12 horas, repetíamos. O ‘pulo do gato’ foi fazer a extração, analisar o caldo no laboratório da própria usina e congelar o material para trazer para Jaboticabal, porque não havia possibilidade de fazer todo o processamento na usina. Para cada período, fizemos quatro repetições. Quatro vezes com zero, seis, 12 e assim por diante”, detalha o agrônomo.
Na Fatec, os cientistas descongelaram o material de todos os tempos de colheita de uma só vez e repetiram as análises que haviam sido feitas no laboratório da usina, para checar se o congelamento havia interferido nas amostras. Descobriram que, sim, amostras de todos os tempos e períodos de armazenamento apresentaram redução na pureza, mas o coeficiente de variação foi baixo. Assim, prosseguiram com o processamento: no caso do açúcar, por meio da extração e tratamento do caldo, seguidos de sua concentração em um evaporador para transformação em xarope. No caso do etanol, realizando a fermentação desse caldo e transformando-o em vinho.
Qualidade
O resultado obtido pelo grupo foi o seguinte: no caso do açúcar, em até 24 horas não há alteração de qualidade no xarope, mas a cana chega a perder quase 10% da massa. Ou seja, o produtor não perde necessariamente em qualidade, mas perde em volume de produto.
No caso do etanol, em até 48 horas não foi verificada nenhuma alteração significativa no vinho, mas os pesquisadores usaram uma levedura de pão, muito adaptável e pouco específica para esse fim. “Temos de fazer experimentos com outras cepas para verificar se realmente o atraso no processamento não tem efeito negativo no etanol. Além disso, dentro da usina há uma outra nuance: quando se faz fermentação, a levedura do vinho é separada e reaproveitada em outros processos. Talvez, em estudos futuros, tenhamos de fazer reciclos de fermentação. Sem contar que as leveduras usadas pelas usinas, e reutilizadas várias vezes, às vezes são adaptadas a cada usina.”
Um dos problemas do impacto do armazenamento no produto final, no caso do açúcar, é que o caldo pode conter moléculas que o tornam mais escuro. “No processo de clarificação do açúcar se utiliza leite de cal. Quando a cana demora demais a ser processada, é preciso aumentar a quantidade de leite de cal adicionada para atingir o pH adequado para tratamento. Mas o aumento do uso deixa um resíduo, as cinzas, que vão parar no açúcar.” Segundo o cientista, no processo de produção do açúcar observa-se uma perda mais acelerada, por conta de transformações que vão acontecendo no material ao longo do tempo como, por exemplo, a quebra da sacarose em frutose e glicose. “A partir das 24 horas intensifica-se a quebra da sacarose, o que tem como consequência a redução de qualidade do produto final.”
Já os problemas do etanol estão relacionados à redução de sua produção e aumento da geração de moléculas secundárias. “Quando se vai fazer a destilação, é mais trabalhoso separar o etanol dessas outras moléculas.”
Os cientistas também descobriram que, se o armazenamento foi feito no início ou final da safra, quando chove muito, a ocorrência de impurezas é mais elevada. No meio da safra, o nível de impurezas é mais baixo. “Além de monitorar todo o processamento pela indústria, também monitoramos todos os dados de precipitação e chuva, e por isso devemos um agradecimento ao Inmet [Instituto Nacional de Meteorologia]. Quando chove e o material está armazenado, é como se a chuva lavasse e tirasse toda a sacarose da cana. A redução de sacarose já acontece ali. O correto seria armazenar em local fechado, um galpão, mas é tanto volume de material que seria quase impossível controlar as condições desse armazém. Então, quando vai chover, as usinas correm para colher a cana, para ter material suficiente para não parar durante o período de chuva. Só que o material fica lá esperando e perde massa e sacarose. Talvez as usinas devessem aproveitar essa chuva justamente para parar e fazer manutenção dos equipamentos.”
O artigo Evaluation of chopped sugarcane storage in different periods of the season and their influence on the sugar and ethanol process pode ser lido em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1155/ioa/9351141.