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Ritual de iniciação feminina evidencia a vitalidade da cultura indígena


Ritual de iniciação feminina evidencia a vitalidade da cultura indígena

A despeito de todas as pressões da sociedade que o circunda, o povo Ticuna preservou uma de suas cerimônias mais importantes, a Festa da Moça Nova. Estudo antropológico investigou em profundidade esse ritual

Publicado em 12/05/2021

José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Até meados dos anos 1970, predominava no Brasil a impressão de que o desaparecimento dos povos indígenas era inevitável e se completaria em algumas décadas. Impactados pela expansão da fronteira agropecuária e da mineração e pelo desenvolvimentismo da ditadura civil-militar, as populações originais do país pareciam fadadas à extinção.

Os anos 1980, porém, foram palco de uma surpreendente reviravolta. Junto com o forte protagonismo político de algumas lideranças indígenas, ocorreu uma expressiva reversão da curva demográfica. Depois, vieram a consignação dos direitos indígenas pela Constituição de 1988 e a demarcação, ainda não completada, de várias terras ancestrais. Na segunda metade da década de 1990, as populações da maioria dos povos indígenas cresceram a uma taxa de 3,5% ao ano, bem acima da média brasileira, de 1,6% no período. E a população indígena total, que havia chegado à casa de 210 mil em 1980, foi contabilizada em 896.917 pessoas pelo Censo de 2010.

Um importante aspecto dessa revivescência foi a recuperação de costumes e práticas culturais que haviam sido fortemente estigmatizadas e reprimidas por missionários cristãos e agentes governamentais. É o caso, entre muitos outros exemplos, do ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna, da Amazônia. Um livro sobre esse tema, escrito pelo antropólogo Edson Matarezio Filho, foi publicado recentemente com apoio da FAPESP: A Festa da Moça Nova: ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna.

Pós-doutorado no Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo (CEstA-USP), sob a supervisão de Marta Amoroso, Matarezio faz pesquisa de campo entre os Ticuna desde 2012. Nesse período, realizou estágios de pesquisa na França e e foi bolsista na Colômbia com apoio da FAPESP,

“Os Ticuna estão localizados no Alto Solimões, na tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia. Compõem um dos maiores grupos indígenas do Brasil. Sua população em território brasileiro, computada em mais de 53 mil pessoas em 2014, é comparável à dos Guarani Kaiowá. Além disso, há cerca de 8 mil Ticuna na Colômbia e quase 7 mil no Peru”, disse Matarezio à Agência FAPESP.

Trata-se, segundo o pesquisador, de uma população bastante diversificada, apesar de compartilhar a mesma língua e, muitas vezes, a mesma estrutura de parentesco. Parte dessa diversidade se deve às influências recebidas da sociedade envolvente. Algumas comunidades são católicas, outras evangélicas. Muitos Ticuna saíram de suas aldeias ancestrais para morar e trabalhar nas cidades. Mas há rituais tradicionais que foram preservados a despeito dessas influências e que são compartilhados por várias comunidades. Um desses rituais é justamente a Festa da Moça Nova.

Ritual complexo

“É um ritual complexo, que dura três dias. Ao contrário de outras festas indígenas, que seguem um calendário sazonal, regulado pelas estações do ano e os períodos de colheita, a Festa da Moça Nova não tem data fixa, pois depende do corpo da adolescente para acontecer. A partir da menarca, da primeira menstruação, iniciam-se os preparativos. A moça é colocada em reclusão, em um cômodo da casa da família. O objetivo é que ela não tenha muitos contatos, principalmente com pessoas de fora. Os contatos geralmente se restringem à mãe ou à avó, que aconselham a moça e a preparam para a iniciação. Os conselhos serão, posteriormente, muito importantes na festa. Tanto os conselhos falados quanto os conselhos cantados em momentos específicos da cerimônia”, contou o pesquisador.

A reclusão é inicialmente individual. Começa com uma moça. Mas, de acordo com o tamanho da comunidade e da rede de relações da família, outras moças que entram no período púbere na mesma época também vão sendo encaminhadas à reclusão em suas casas familiares. Ao mesmo tempo, as famílias estabelecem acordos para fazer a festa em conjunto. A preparação inclui plantar uma roça de mandioca para a confecção do pajauaru, a bebida fermentada. E também reformar a casa de festa, onde os convidados vão esticar suas redes e a comemoração propriamente dita irá acontecer. No período que antecede o ritual, que pode durar dias ou semanas, as moças ficam reclusas juntas na casa de festa. Durante esse tempo, elas permanecem com os olhos vendados, para aguçarem a audição e o tato. E são pintadas com jenipapo e adornadas. Isso tem um significado simbólico muito forte. É como se o sumo de jenipapo trocasse suas peles.

Tudo isso configura não somente um cuidado individual, dos corpos e das pessoas das moças, mas também um cuidado coletivo, que protege toda a comunidade de “espíritos” e “entidades” que os Ticuna chamam de ngo’o. Esse termo é traduzido usualmente como “bichos”, mas, no passado, o etnólogo Curt Nimuendaju (1883-1945) o traduziu como “demônios”. E a Bíblia evangélica em língua Ticuna manteve a palavra com esse significado. Mas, segundo Matarezio, essa talvez não seja uma tradução muito adequada, porque a palavra ngo’o nomearia entes e estados corporais muito mais complexos do que aqueles que as mitologias judaica, cristã e islâmica chamaram de “demônios”.

“Esses entes são atraídos pelo cheiro da menstruação – especialmente da primeira menstruação. Além dos ngo’o, esse estado particular da moça atrai igualmente os ü’üne, que são os ‘imortais’ ou ‘encantados’. Essa categoria inclui também os antepassados mortos. Ao contrário dos ngo’o, considerados os entes mais maléficos do cosmo Ticuna, os ü’üne são bem-vindos na festa, por serem portadores e doadores de conhecimento e sabedoria. Os ü’üne são muitas vezes concebidos como entes, mas a palavra se aplica também a estados de consciência. Existem pajés ou xamãs que, por meio de uma alimentação específica e de outros recursos, podem fazer com que seus corpos se tornem mais próximos desse estado de ‘imortalidade’, que só vai ser atingido plenamente depois da morte”, explicou o pesquisador.

Os ü’üne estariam presentes no cotidiano Ticuna. Mas, no contexto do ritual da iniciação feminina, se manifestariam principalmente por meio do som das flautas ou trompetes cerimoniais. “Os Ticuna têm um conjunto muito rico de instrumentos musicais. Nesse conjunto, destacam-se três trompetes. Dois deles, o iburi e o to’cü, são classificados pela etnologia como ‘flautas sagradas’. Sua visão e manuseios são vedados às mulheres e crianças. Essas flautas são tocadas para as moças atrás do quarto de reclusão. Seu som é o veículo para que os espíritos falem com elas. Elas os escutam cantar, mas não podem vê-los. Somente alguns pajés possuem essa capacidade”, disse Matarezio.

Em seu livro, o pesquisador analisou detidamente o significado da reclusão e da posterior saída da moça do confinamento. E o comparou a um novo nascimento. O quarto de reclusão seria o equivalente do útero materno. E a saída da moça por um caminho apertado seria o equivalente da passagem do feto pelo canal vaginal. Outra analogia, que não contradiz a anterior, é a da transformação da crisálida em borboleta. Uma canção Ticuna, recolhida por Curt Nimuendaju, refere-se explicitamente a isso.

“Há um processo de metamorfose em curso. A ideia é a de que o corpo Ticuna é construído e reconstruído em reiterados cerimoniais. Existe a iniciação dos bebês. Existem as iniciações de meninos e meninas durante a infância. Existem as iniciações na puberdade. É todo um processo de cuidados, aconselhamentos e proteções que as famílias e a comunidade prestam às pessoas. Isso tem pouco a ver com as dinâmicas do Estado, com as dinâmicas das missões católicas e evangélicas. A manutenção dessa vida cerimonial é, de certa forma, uma resposta que vai na contramão das pressões da sociedade envolvente. No ritual da iniciação feminina, a moça é protegida porque ela é, de certa maneira, um resumo do cosmo inteiro”, afirmou Marta Amoroso, que participou da banca examinadora da tese de doutorado de Edson Matarezio, da qual resultou o livro em pauta. E, posteriormente, foi sua supervisora de pós-doutorado.

Inversão de papéis sociais

A antropóloga chamou a atenção para o fato de que na Festa da Moça Nova há toda uma inversão dos papéis sociais: os homens falam em falsete, as flautas cantam com a voz dos “encantados”, as moças estão mergulhadas em um estado onírico, na fronteira da idade, na fronteira da relação com os afins, na fronteira da relação com o cosmo, habitado também por outros seres.

Em seu estudo de pós-doutoramento, Matarezio explorou mais profundamente o tema, investigando o que as moças sentiam e pensavam durante todo o processo de iniciação. Investigou também o papel dos xamãs na festa. São eles que “colocam espíritos” nos trompetes ou flautas rituais. Sem o “benzimento” dos xamãs, esses instrumentos são objetos triviais, sem mais valor ontológico. Mas, uma vez “espiritualizados”, eles se transformam em “gente” na perspectiva Ticuna. Por isso, vê-los e manuseá-los constituem tabus: só os homens mais velhos podem fazê-lo. “Na festa, os trompetes ou flautas rituais emprestam voz às ‘entidades sobrenaturais’ que circulam pelo ambiente. E, no processo de ‘benzimento’ e em outras práticas xamânicas, o tabaco é componente muito importante. É a fumaça do tabaco que conecta os vários planos de realidade, possibilitando o relacionamento entre os humanos e os ‘espíritos’”, disse.

“No passado, a Festa da Moça Nova podia durar um ano ou um ano e meio. A jovem entrava em reclusão na primeira menstruação e a festa só ocorria um ano ou um ano e meio mais tarde. Por isso, os antropólogos norte-americanos que estudaram esse tipo de ritual nos anos 1940 afirmaram que os povos indígenas da Amazônia não poderiam sobreviver. Porque seria impossível a eles dar vazão à estrutura cerimonial tão complexa que tinham depois que passaram a participar, como trabalhadores rurais, da economia extrativista. Mas o que a pesquisa de Matarezio mostrou foi uma extraordinária capacidade de reinvenção. Os Ticuna mantiveram o cerimonial, porém o adaptaram a suas novas condições de vida. Hoje, a festa dura um final de semana, porque muitos participantes terão que comparecer aos seus empregos na segunda-feira seguinte”, disse Amoroso.

A festa da moça nova: Ritual de iniciação feminina dos índios Ticuna
Autor: Edson Tosta Matarezio Filho
Editora: Humanitas
Ano: 2019
Páginas: 464
Preço: R$ 50
Mais informações: http://cesta.fflch.usp.br/node/1343

 

Fonte: https://agencia.fapesp.br/32855